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Pedro Mafama: África Minho

Entrevista ao músico que lança o álbum de estreia, "Por Este Rio Abaixo", nesta sexta-feira.

Pedro Mafama: África Minho
Fernando Marques (cortesia Sony Music)

Publicado neste final de semana, o álbum de estreia de Pedro Mafama, "Por Este Rio Abaixo", é um trajeto sonoro entre o folclore nortenho, os re-cantos de Lisboa e os ritmos africanos. Pedro Mafama é o tripulante timoneiro de uma embarcação, que tem como passageiros Ana Moura (canta 'Linda Forma De Morrer'), Branko (co-produz a faixa 'Algo Para a Dor'), Profjam (visita 'Cidade Branca') ou Tristany (presente no desassossego noturno de 'Borboletas da Noite').

Nesta viagem transcontinental e bem marítima, a embarcação de Mafama cruza-se com a de Fausto, e 2021 com 1982. A Fausto e ao seu álbum duplo conceitual "Por Este Rio Acima", o "marinheiro" Pedro Mafama acena, anunciando rota inversa "Por Este Rio Abaixo". Ambos vão e vêm do passado do mesmo país, mas Mafama escolhe uma rota diferente, com a vista noutro futuro, mais eletrónico, ou melhor, etno-eletrónico. 

Pedro Mafama canta como um bergmaniano do Atlântico. Tal como o cineasta Ingmar Bergman, sente por perto o mar e a morte. E os maremotos de alma das mulheres - no caso de Mafama, as viúvas dos pescadores (ou as futuras viúvas). O cantor do bairro lisboeta da Graça encarnou nessas mulheres e nos anónimos tripulantes que não estão esculpidos nas estátuas e que a história esqueceu. Antes que a globalização e a americanização provoquem o apagão do que resta, Pedro Mafama encontrou nas memórias dos povos português e africanos um espírito de missão.   

Por Este Rio Abaixo é uma expedição marítima em contracorrente?
Expedição marítima, não. Namora metaforicamente com a ideia de partir para o mar, como metáfora para sair da cidade onde estão os nossos demónios, em busca de alguma coisa. Uso poucas vezes palavras que remetam para as navegações. Quando as uso, é para as contrariar: "não sou descobridor, sou pirata do mar". Quero dizer que não sou descobridor, nem quero ser. Uso no 'Borboletas da Noite' com o Tristany o "Adamastor": "sei que o Adamastor é um vício cruel que me mete a suar". É como uma metáfora para demónios pessoais. O disco brinca com uma narrativa de partir para o mar, pensando como posso perpetuar esta relação como lisboeta, como português, mesmo que nasça no interior está sempre próxima do mar. É uma parte muito importante na nossa história que uso como metáfora.

Aliás, o álbum está cheio de metáforas aquáticas. Nestas canções, há a presença repetida da noite tempestuosa, ocorre até a aparição do Adamastor, de que já falaste, e lamentam-se alguns afogamentos de alma. Este disco é metaforicamente uma dobragem de muitos cabos das tormentas?
Quero ir para alto mar, não quero falar em cabos bojadores e das tormentas. A minha viagem é até aos nossos parentes do norte de África, até Angola se calhar, em termos de sonoridades e de ritmos. Quando oiço falar em Cabo Bojador e Cabo das Tormentas, vêm-me à memória todas as aulas de história e dos descobrimentos. É verdade que neste disco namoro com essa ideia, mas quero pôr esse legado de lado, não para apagar as coisas, porque fazem parte da nossa história, mas para focar-me noutras. Quero falar do mar e não do Cabo Bojador e do Cabo das Tormentas. Prefiro falar de pescadores e dos mouros que nos chegaram e atravessaram o Estreito de Gibraltar e da mistura africana que veio através de uma coisa violenta como a escravatura. Prefiro falar sobre as histórias não contadas do mar do que estes grandes monumentos que fazem parte da nossa história. 

 

Fazes uma viagem musical entre o norte de Portugal e África. O álbum épico do Fausto, "Por Este Rio Acima", é uma inspiração e o teu disco é a sua inversão?
De certa forma. A obra do Fausto não é propriamente uma inspiração mas sim um marco incontornável, quando as pessoas à minha volta começaram a perceber que o que me interessava era a música popular portuguesa. Quando se começou a tornar evidente que o que queria era revisitar e reinterpretar a música popular portuguesa, o grande monumento era o disco do Fausto. Quando eu falava nestas coisas e as pessoas percebiam onde queria chegar, diziam-me sempre: "tens que ouvir este disco"; "aqui está uma pessoa que fez isto antes de ti e que fez de uma forma genial". Foi um disco que fui ouvindo e assimilando, nunca como inspiração, mas como referência incontornável. É um disco lindo, de uma poesia inquestionável. Decidi homenageá-lo e contrariá-lo como qualquer pessoa jovem que tem coisas para dizer. Homenageamos os nossos avós e ao mesmo tempo contrariamo-los. Acho que é o que me interessa na escolha do título: homenageá-lo e contrariá-lo. Contrario por causa destas histórias das navegações e dos descobrimentos, descobrindo uma nova forma de olharmos para o mar e para a nossa história com água: com os rios e com os mares.  

Algumas canções parecem rezas junto ao mar. És religioso?
Fui criado como ateu completo. Só de um lado dos meus avós é que há religiosos. Mas fui desenvolvendo uma certa ideia de religiosidade ou de espiritualidade, que é como a minha música. Posso dizer que a religião já me ajudou muitas vezes a acalmar-me e a encontrar beleza, a ver para além da tempestade e dos sentimentos e das coisas do dia-a-dia. Sem querer falar muito de uma coisa que não tenho muito desenvolvida na minha cabeça, gosto muito de perceber a ordem das coisas e as regras do cosmos - que é tão maior que nós - e que há uma beleza maior que a beleza das coisas que estão ao nosso lado.  

Às vezes, pode haver espiritualidade sem religião.
Não sou muito por esse pensamento de que "o universo vai dar-me coisas". As pessoas só estão a substituir a palavra Deus por universo. Não sou muito dado a esta espiritualidade que é um zen californiano, em que quando se procura a espiritualidade, estás à procura de ti mesmo e de tomares conta do teu eu. E de repente, aquilo é uma coisa egocêntrica. Para mim, se há alguma coisa na religião, é justamente o não eu. Há algo maior, não interessa se vais agora às compras na Pull & Bear, ou se tens dinheiro, ou se tens felicidade. Para mim, não importa se tens dinheiro ou não. Há um círculo muito mais abstrato do que isso. A espiritualidade remete-me para uma nova religião que é, afinal, à volta do eu. Para o eu, já temos o marketing e a publicidade para dar essa religião.  

Como cantor, sentes-te como uma viúva da Nazaré?
Às vezes, sinto-me. O que eu gosto na minha música é que eu sou a viúva da Nazaré, às vezes sou a pessoa que está do outro lado de Gibraltar, em que o seu marido ou amante migrou para a Europa e se perdeu no mar. No 'Contra a Maré', namoro um bocadinho essa ideia, e pus-me nessa posição em termos filosóficos e artísticos de estar no noutro lado da margem de Gibraltar, em que o amante partiu para o mar e para a Europa, tornou-se um migrante e ficas a pensar no que lhe aconteceu. Ponho-me no lugar da viúva da Nazaré, de uma mulher norte-africana que viu o marido a partir para o mar, na mulher de Alfama de há 100 anos que viu o seu filho a partir para o mar. Ponho-me no lugar das pessoas diferentes. Aliás, uso isso para enquadrar os meus próprios pensamentos. Às vezes, expresso-me, expresso os meus sentimentos, através da imagem da viúva nazarena. 

 

Sente-se no disco o drama do amor perdido e da passagem do tempo e ao mesmo tempo há também a esperança. És um sebastianista?
Não sou sebastianista. E a partir de agora, não há já D. Sebastião porque o Tristany diz no 'Borboletas da Noite' que matou o D. Sebastião. Pessoal, lamento informar, mas o D. Sebastião está morto. Eu tenho esperança e tragédia em todas as coisas que canto, porque sinto que a vida também é isso: está tudo bem, amanhã está tudo mal; para mim hoje está tudo bem, mas para outra pessoa hoje está tudo mal. Tento pôr o lado bom e o lado mau, o lado esperançoso e o lado trágico na mesma frase às vezes, porque sinto que isso transmite de forma realista a vida. Gosto da ideia de aceitar o lado trágico e o lado esperançoso. Não precisa de estar tudo bem, mas espero também que não esteja tudo mal. Podem estar ao mesmo tempo e acho que isso reflete o mundo em que vivemos. 

Cantas muito sobre os teus temores. Tens medo da morte? 
Houve uma altura em que não tinha e em muitas músicas do disco, não tenho. Não temo a morte, por causa desta coisa de aceitar que há uma coisa maior do que a minha morte ou não. Há uma beleza no universo que vai continuar mesmo que eu já não esteja aqui. Mas neste momento, não gostava de morrer.

 

Assinalas a marca de portugalidade tanto nos sons de folclore português ou da guitarra portuguesa, como no guarda-roupa de toureiro ou em frases como "tenho alguidares de roupa para lavar? ou ?eu fui com um alguidar à fonte". Essa marca portuguesa surge com naturalidade ou como um cálculo estético?
As duas coisas. É um cálculo estético no sentido em que escolho o enquadramento, para contextualizar os meus sentimentos e as emoções que estou a passar. Ao mesmo tempo, escolho essas imagens porque traduzem coisas que vi na minha infância e as imagens com que cresci. Estás na cama e ouves o amolador na rua. Só passados muitos anos é que vi o homem da bicicleta que fazia esse som, que usei num interlúdio, que é o 'Mercado'. Usei a minha voz em auto-tune para fazer o som do amolador. São imagens que me remetem para a minha infância e que sinto que neste canto do mundo temos bem presentes nas nossas memórias. Escolho esse enquadramento. Poderia dar outros enquadramentos. Tenho a memória do amolador, dos alguidares e do chafariz à porta de casa, mas também tenho outras memórias, de imagens do Cartoon Network e do Canal Panda, e por alguma razão escolho umas e não outras. É o contexto visual que quero pintar agora.

Sentes-te mais um morcego ou uma gaivota?
Neste momento, sinto-me mais uma gaivota. Fui muito morcego nos últimos anos. Gravo parte deste disco ainda como morcego. A partir de certa altura, virei gaivota. Parece-me que o morcego é mais noturno, tem mais a ver com a morte e é uma coisa mais negativa. A gaivota voa, está ao pé do mar, está no céu, não se vê à noite, é mais diurna. Sinto-me mais gaivota. Sinto que quero viver, voar longas distâncias, viver de dia, correr atrás do destino.   

 

Vão ser inevitáveis as comparações com o Conan Osíris?
Talvez, porque somos pessoas que estamos a trabalhar sobre o mesmo assunto. Assim como outros nomes. O revisitar da tradição é um assunto vago: repensá-lo para o presente e para o futuro, transmitir coisas do passado para aquilo que estamos a viver agora. Felizmente, há muitas pessoas a trabalhar sobre o mesmo assunto, sobretudo na Península Ibérica.

Estás a pensar, por exemplo, na Rosalía?
Sim, mas também podemos estar a falar do Dino D'Santiago, do Johan Papaconstantino, em França. Podemos até falar de pessoas que não estão a pegar tão obviamente nos ritmos folclóricos e misturá-los com a eletrónica, mas estão a fazer também alguma coisa, como a Duda Beat, no Brasil. Há muitas cabeças a pensar no mesmo sentido, somos todos contemporâneos da cultura globalizada e por algum motivo há muitas pessoas a querer responder a essa cultura globalizada com algo de mais local, querendo reconciliar e fazer a paz entre o passado e o presente. 

Por falar tanto em mar e em morte, como vês o Mar Mediterrâneo a ser transformado numa gigante vala comum de corpos de imigrantes?
Vejo com enorme tristeza estes mares terem tanto sangue, tantos corpos e tantas lágrimas a correr neles desde há tantos séculos. Sinto que o mar vai ser sempre um sítio que traz alegrias, beleza e poesia, e traz sangue e lágrimas. O mar tira, o mar dá. O mar dá e tira vida. A vida não existiria sem água, mas o mar tira muitas vidas também. 
Acho muito triste que a situação esteja assim com uma cultura norte-africana que quando esteve na Península Ibérica foi tão importante para a civilização europeia: os filósofos, os matemáticos, os cientistas, os médicos. Tudo o que se criou aqui e que veio dos árabes, lançando as bases para a civilização europeia prosperar, está agora invertido. A tragédia passou a estar do outro lado e o conhecimento deste. A civilização que era próspera e a fonte do conhecimento pode passar para o lado dos perdedores assim do nada. A Síria era um centro de civilização e de conhecimento e agora está feita numa ruína. Faz-me pensar que isso pode acontecer na Europa. Se a Síria, que era um centro civilizacional, está feita num caco, então isto pode acontecer na Europa também. Se Bagdade e Damasco viraram ruína, então Londres e Paris também podem virar ruína. 

 

Pedro Mafama apresenta ao vivo o álbum "Por Este Rio Abaixo" no Lux, em Lisboa, nos dias 15 e 16 de julho. A lotação está esgotada para ambas as atuações.