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Frankie Chavez: A minha quarentena

O músico Frankie Chavez também partilhou connosco os dias da sua quarentena e alguns pensamentos sobre o que estamos a viver neste momento.

Frankie Chavez: A minha quarentena
Rita Carmo / Cortesia Lado Oposto

 

Sentimento estranho este... Olho para trás e tive um início de ano promissor. Ideias para gravar em 2020, um festival na Holanda que podia abrir algumas portas a "Miramar" (projecto que tenho a meias com o Peixe), uma tour marcada com 15 ou mais datas. E de repente veio a incerteza. Deparei-me com datas adiadas sabe-se lá para quando, concertos em stand by... Confesso que não sei o que vai acontecer. Ninguém sabe.

O meu dia a dia tem sido de adaptação. Por um lado estou habituado a estar sozinho. De manhã costumava ir para o estúdio, tocava um bocado ou ensaiava para algum concerto ou tentava escrever música. Depois almoçava por lá ou tentava almoçar com o meu pai em casa dele. Aquela pequena rotina que ia dando sentido ao resto. No entanto, hoje em dia, os meus filhos estão em casa o dia todo... e isso muda tudo. É que são quatro. Pois... O mais velho tem 10 anos. Depois tenho um com 6 anos e 2 gémeas a caminho dos 4 anos. Geralmente eles estão na escola durante o dia e eu tenho tempo para trabalhar. Às 17h costumava ir buscá-los e começava com "as actividades de fim de dia": desporto, aulas de guitarra ou piano, banhos. Restava o jantar, contar uma história e eram horas de ir para a cama. Agora estão os 4 em casa. Por um lado é ótimo tê-los mais perto de mim - a eles posso abraçar quando me apetece, dar beijinhos quando me deixam... não há distanciamento social entre nós. Pelo menos por agora. E confesso que é ótimo, também, não ter a confusão das "actividades de fim de dia". Por outro lado é um constante adaptar a uma nova dinâmica: a escola é virtual, tenho que manter uns concentrados, outros ocupados para não distraírem os primeiros... E no meio disto encontrar tempo para ler, tocar um instrumento, gravar... Felizmente vou-me revezando com a minha mulher e tento, quando dá, ir correr ou andar de bicicleta e fazer um pouco de desporto.

Sentimento estranho este... Estou em quarentena e não tenho tempo para fazer coisas que talvez conseguisse fazer se não houvesse quarentena... mas é a minha realidade. Mas o pior para mim é não poder estar com o meu pai. Fez 90 anos em Dezembro - está ótimo (para uma pessoa de 90 anos) - mas, obviamente, tem que estar isolado. Nenhum dos seus 4 filhos lá tem ido nem nenhum dos seus 13 netos lá tem ido. Este inimigo comum a todos nós faria muito mais dano a ele do que a qualquer um de nós. Então resta-nos a tecnologia para mantermos o contacto. Apesar dos seus 90 anos o meu pai tem facebook, instagram e faz chamadas via WhatsApp para podermos conversar. Por vezes faço concertos privados. Sempre é uma maneira de lhe mostrar o que ando a aprender na guitarra portuguesa que ele me ofereceu no natal. Eu sei que disso ele gosta... Sempre nos entretemos um ao outro. Sentimento estranho este... se pensarmos que vivemos a 3 quarteirões um do outro e não o vejo há quase 1 mês. Até quando será assim? Volta a incerteza... 

Egoísmos à parte: Do que me estou a queixar? De ter os meus filhos em casa o dia todo? De poder escrever música e de poder tocar instrumentos e ver filmes? Enfim... problemas de primeiro mundo. E os outros? Agradeço diariamente o facto de ter saúde, de os meus filhos terem saúde comida na mesa e de ter um tecto para os proteger. Penso muito nisto do contacto humano. Em como isto nos vai afectar. Temo que toda esta situação crie um distanciamento entre as pessoas que naturalmente estão próximas umas das outras. Por exemplo no supermercado ou na bomba de gasolina, num concerto (daqueles com pessoas).

Por outro lado espero, no fundo do coração, que esta situação aproxime de facto as pessoas que nunca se viram. Espero que este Covid-19 consiga despertar uma maior consciência e solidariedade e que aproxime as pessoas independentemente da sua classe social, etnia, língua, nacionalidade ou cultura... Afinal o objectivo de ultrapassar esta crise é comum. Aquilo que tenho visto em Portugal tem sido incrível: vizinhos a partilhar legumes e informação fidedigna, amigos a oferecerem-se para irem às compras para que outros não não tenham que sair de casa, profissionais de saúde a sacrificarem a sua vida pessoal diariamente para tratarem aqueles que precisam, milhares de pessoas a manter os serviços básicos para que outras possam ter o lixo recolhido, electricidade, água, comida em casa e medicamentos necessários... Tudo por uma necessidade comum: atravessar este deserto de incerteza, onde todos caminhamos a pé. Quero acreditar que tudo isto é uma fase e que, mais cedo ou mais tarde, as coisas se irão aproximar da normalidade.

Calculo que tudo será diferente do que era... Haverá o antes e o depois do Covid19. No entanto espero que possamos aprender alguma coisa com tudo isto. A tal solidariedade seria uma boa coisa a adoptar às nossas vidas. Tenho mantido a esperança para não deixarmos que o medo nos afecte. Para que não nos faça abraçar menos, tocar menos, aproximar menos. E é nessas alturas que tenho pegado na guitarra. Para me lembrar que vai ficar tudo bem. É a esse sentimento que me quero agarrar. 

Frankie Chavez