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Capicua: "o hip hop não é música de fundo"

Entrevista à rapper do Porto sobre o seu novo álbum, "Madrepérola", inspirado na maternidade.

Capicua: "o hip hop não é música de fundo"
André Tentugal

Abriu-se a via láctea para a rapper Capicua, neste seu novo álbum marcado pela maternidade, "Madrepérola". O disco fecha a trilogia aquática, começada pela "Sereia Louca" (o segundo álbum) e continuada pela "Medusa".

Neste 'Tanto Mar' uma vez lamentado por Chico Buarque, Capicua atravessou-o em mil e uma palavras molhadas e quase sempre escritas no género feminino, em águas amnióticas ou não, mas nunca em águas de bacalhau, porque Ana, a Maria Capaz, não deixa nada por dizer.

Mulher com norte, "faz das Tripas o Coração", e do Brasil a sua (outra) inspiração. Neste "simbólico" encadeamento de sementes, levou partículas ancestrais, citando, reapropriando e renovando, a partir de referências como Amália Rodrigues, Sérgio Godinho, Grandmaster Flash, Jorge Amado ou Fernando Pessoa. Eles revivem no fundo da alma da mulher que não "faz música de fundo". Ela é Ana, a Capicua, a grande mulher da nossa rapública.   

Nesta entrevista, escolhemos cinco faixas de Madrepérola como ponto de partida - e como Porto de partida.

 

Faixa nº2: 'Passiflora'
“Para quê o hype se eu prefiro fazer história?”
“Estranhem-me, porque eu entranho-me”

O álbum ainda mal está a começar, quando ainda vimos de outro mundo ou de outra coisa que estávamos a fazer, e já Capicua deita todo o seu ar cá para fora, em português pouco suave, sem filtro, sem travar. Faz crítica à critica. Não é da moda, nem quer ser. E escolhe o seu fado e os seus fadistas: Amália e Camané. Capicua faz uma entrada a pés juntos. Mas é assim que tem que ser o hip hop, não é? "O hip hop vive muito do impacto, não queremos ser música de fundo". “É preciso trabalhar a punchline e nós fazemos isso através do humor, do flow e, às vezes, através da emoção. Neste caso, como a música nasce do disco do Stereossauro, O Bairro da Ponte, em que fiz uma primeira versão para o Camané cantar [em Flor de Maracujá]. Todo o instrumental é baseado em samples da Amália. Tentei fazer um fado. Sendo um rap, é um fado também. E o fado implica aquela emoção sem filtro, uma coisa completamente intensa e abnegada. Tentei entregar tudo. Como era uma segunda vida da canção, se não fosse para ser igualmente intensa, não valia a pena tentar. Ao mesmo tempo, fala dos desconfortos do ofício, isto de fazer música, os nossos embates com os media, a crítica, a indústria, o público, a tribo - que neste caso é a comunidade de hip hop. É uma catarse daquilo que me incomoda, do que vai apagando o meu romantismo aqui e ali. Apesar de continuar a ver o copo meio-cheio e de continuar a fazer música com muito gosto e intensidade, há coisas menos boas e eu precisava de falar delas. Esta é a letra em que me dei ao luxo e à liberdade de dizer tudo sem filtro", sem que Capicua se preocupasse com o que “as pessoas iam pensar, ou se iam achar que eu estava amargurada ou revoltada”. A rapper nortenha não se quis limitar, só para não correr o risco de ferir alguém do meio. "Como estava grávida e, portanto, bastante hormonal, decidi escrever sem filtro e gravar com toda a intensidade”. Quem pensar que a maternidade iria moderar Capicua, que se desengane e oiça Passiflora. “Este disco, mais que a maternidade, é uma gravidez e um pós-parto. Não há nada mais intenso emocionalmente que essa fase".   

'Passiflora' tem das letras mais densas e sinuosas. Como consegue Capicua o super-poder de tanta memorização? "O truque é repetir, repetir, repetir muito todos os dias. É um bocadinho como os nossos pais nos diziam quando andávamos na escola: 'mais vale meia-hora todos os dias do que muitas horas na véspera'. É verdade, a memória funciona assim. Quando me preparo para um concerto, no caso na antestreia do disco no Teatro da Trindade [em Lisboa], eu tinha que decorar as outras todas. Havia umas que eu sabia, outras que não. Todos os dias, mesmo quando não tinha ensaio, repetia todas as letras, uma ou duas vezes para consolidar a memória. Se for só nos últimos dias, a memória mais recente é a primeira a falhar".  

 

Faixa nº4: 'Circunvalação'
"Faremos como sempre das tripas o coração/Que bate entre o Douro e a Circunvalação!"
"As hortas, as ilhas, os bairros, as filas/Sempre na fronteira entre a cidade e vila"

Capicua volta a espalhar pedacinhos autobiográficos seus, em especial nesta música sobre o seu Porto de abrigo. É uma faixa tanto sobre a cidade, como sobre a cidadania. A rapper "nascida em Cedofeita, na década de oitenta", mostra as suas predileções pessoais, como os "rissóis da Império" (junto à Trindade) e faz o apelo: "não me empurrem que o meu coração está entre o Douro e a Circunvalação", inspirado na frase do clássico do hip hop 'The Message' de Grandmaster Flash: "Don't push me/cause I'm close to the edge". É "uma carta de amor" de Capicua à sua cidade e um pedido contra a troca do coração das suas gentes por um "cenário oco" para o turismo. "A circunvalação fala sobre uma cidade que é a minha, o Porto, que é muito contraditória. É tão monumental, aberta sobre o rio, bonita e cheia de riquezas, como é tosca, sombria, com um passado rural recente e meio desfragmentada na organização do território. É uma cidade com um povo muito orgulhoso dela e que defendeu sempre muito ao longo da história. Como digo, 'faremos como sempre das tripas o coração', por esse espaço 'entre o Douro e a Circunvalação!'. Esta música, que celebra o Porto real, habitado, castiço, quotidiano, faz o apelo para que não nos expulsem da nossa cidade que defendemos tão apaixonadamente. É um bocado irónico que o Porto seja tão amado pelos seus, se veja na situação de empurrar para fora os seus cidadãos, porque não conseguem aguentar os preços das rendas, por causa da especulação imobiliária, lojas antigas que são fechadas para que cadeias multinacionais abram lojas que são iguais a todas as outras cidades do mundo, ou mesmo aqueles restaurantes e mercearias gourmet com bacalhaus de plástico à porta. As velhas rotinas dos portuenses e os velhos espaços acabam por se descaracterizar e tornar-se numa coisa meia plástica para inglês ver e isso preocupa-me. Claro que o turismo tem coisas muito boas: cria empregos, recupera os edifícios. Mas não pode ser à custa da identidade e das pessoas que sempre viveram ali". 


 

Faixa nº6: 'Parto sem Dor' 
"Como a pérola nasce da ostra, de mim nasce outra matriosca"

'Parto sem Dor' é mais um tema do disco às voltas da maternidade e desse encadeamento genético. É uma lengalenga tão ao gosto de Capicua. "Fui buscar para o refrão uma lengalenga do Sérgio Godinho, que é uma música do [álbum] Campolide, de 1979. É uma música circular, uma lengalenga que se repete durante um minuto. Eu fiz a minha própria continuação, uma letra para acompanhar a letra do Sérgio Godinho. Tem essa cadeia circular porque fala da cadeia de sementes, um matriarcado de sementes que nos liga todas à mesma massa. Isto nasce também de uma crónica que escrevi para a [revista] Visão, em que falava de uma descoberta. Andava a ler sobre isto da fertilidade e da gravidez, e descobri que as mulheres nascem já com todos os óvulos que vão ter ao longo da vida, o que significa que os nossos óvulos são feitos na barriga da nossa mãe. Nós não fazemos os nossos próprios óvulos, nós fazemos os óvulos das nossas filhas, o que significa que os óvulos onde nós nascemos foram criados nas barrigas das nossas avós. Isso é super-poético porque torna esta ligação ancestral não só simbólica completamente biológica. Essa ideia de que não fazemos os nossos próprios óvulos mas sim para as nossas próximas é quase como se fosse um enxoval genético que deixamos de geração em geração. Fiz uma analogia com o pão, em que guardamos o pão de ontem para fazer o pão de amanhã. Em cada pão, há uma partícula ancestral, é uma ideia de massa com que nos construímos uns aos outros. Resolvi transformar isso numa letra, porque estava grávida e tudo ganhou um novo sentido, e fui buscar essa lengalenga do Sérgio Godinho que se chamava 'Parto sem Dor'. Ele fala das partidas e das despedidas. Mesmo quando partimos para uma coisa boa, há sempre uma parte de nós que está em luto, que se despede do que era anteriormente. Isso acontece durante a gravidez do primeiro filho, porque estamos com uma perspetiva de futuro e de renovação, mas há também uma parte de nós que se despede de uma identidade anterior. O parto é uma espécie de renascimento. Essa cadeia de sementes, essa capicua, essa pescada de rabo na boca eterna, de retornos, de renascimentos, das mortes e dos partos, fizeram com que a música criasse uma circularidade e uma ideia de repetição e de cadeia”.  

 

Faixa nº12: 'Último Mergulho'
"Sou do rebanho do Mário/Eu marco o macro-cenário"

Mário é o road manager, "o pastor do rebanho" de Capicua. Tem mar dentro do nome, onde habitualmente nada e surfa Capicua, que reencontra a figura mitológica da sereia e encontra uma outra lenda, Lena D'Água, ou Lenda D'Água. A mulher que quando fosse grande queria ser prof de windsurf voltou à imprevisível água salgada. O agudo do canto de Lena D'Água foi a corrente de vento que empurrou a prancha à vela e o rap de Capicua. "Não estava planeado mas esta acaba por ser a terceira etapa de uma trilogia aquática que não previ mas aconteceu: a Sereia Louca, a Medusa e este Madrepérola. A figura da mulher e da água é o que marca esta trilogia. A música começa com uma citação do Jorge Amado, em que fala da Iemanjá como uma sereia, ou a Nossa Sra da Conceição, a Deusa, ou a mãe, toda essa figura matriarcal que em todas religiões aparece de uma forma ou de outra, no candomblé (o culto religioso de Jorge Amado) tem essa dimensão aquática muito marcada. Este disco também se inspira muito no Brasil. Voltei ao Brasil, fui a Salvador da Baía. Foi também no Brasil que senti o meu bebé a mexer pela primeira vez, na praia da Conceição, que é a praia da Iemanjá. Essa música tem essa referência da oração, que tudo corra bem. Essa representação da sereia está associada a uma figura espiritual e mitológica a quem todas as mães pedem para que tudo corra bem”.

Também inesperada foi a presença de Lena D’Água à última... no 'Último Mergulho'. "Tinha o refrão que escrevi já com o meu bebé ao colo. A primeira gravação que tenho a experimentar esse refrão sou eu a cantarolar para o telemóvel com o meu bebé a fazer barulhos atrás. Esta música foi a última a ser escrita, com o bebé cá fora. Eu senti que tinha que a acrescentar ao grupo de canções que já tinha gravado. E eu precisava de alguém para cantar o refrão - que eu não canto, faço rap, que é bastante diferente. Eu andava à procura de uma pessoa, perguntei ao meu produtor quem é que achava que devia cantar. Estivemos a ponderar esta pessoa e aquela, e depois houve um dia em que eu já estava no limite do prazo, porque já estava a fechar o disco, faltava-me gravar esse refrão, e liguei a televisão e estava a Lena D’Água a falar do seu disco novo. E eu disse: ‘mas que óbvio, como é que não me lembrei da Lena D’Água. Convidei-a. Ela foi super-generosa. Na verdade, a voz dela era a perfeita para aquilo que tinha imaginado. Ela tem uma voz super-aguda e com muita profundidade. É uma cantora com uma experiência de longos anos, com uma voz muito versátil. E o refrão ficou mesmo como eu tinha imaginado".

     

Faixa nº13: Mátria
"Sou dum país-sereia que é metade areia e que é metade água"
"Sou balzaquiana, sou mais do que Ana, eu sou Maria Capaz!"

"Minha Pátria é minha língua", escreve Fernando Pessoa. "Minha Mátria é minha língua", reescreve Capicua, que faz nesta última faixa de "Madrepérola" mais uma carta de apresentação sua. Do outro lado do Atlântico, respondem os bros zucas Emicida, Rincon Sapiência e Rael da Rima. "Maria Capaz é uma espécie de alter-ego meu, um sinónimo de mim. Esta música é partilhada com três rappers que admiro imenso, que são o Rincon Sapiência, o Emicida e o Rael. Fala da identidade de cada um como um híbrido que é ancorado em mil genealogias diferentes. Estamos a falar da nossa mátria e depois de um sem-fim de referências, de ancestralidades, de famílias, de tribos, de heranças culturais que tornaram aquilo que nós somos, estes seres particulares, híbridos e misturados. É uma música que fala da nossa identidade e dos nossos nomes de código. Maria Capaz acaba por ser um cognome meu".

'Mátria' é um neologismo ao gosto de Capicua, que vem mesmo a calhar. "Mátria é a minha forma feminista de definir que a minha pátria é a língua-mãe. A língua-mãe é mais mátria que pátria. É um atrevimento reescrever [Fernando] Pessoa de um ponto de vista mais matriarcal".  

 

 

Neste link, pode consultar a nossa entrevista de há três meses, em que se fala do tema-título Madrepérola.