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Isto de ser Catarina Munhá

"Animal de Domesticação" é o disco de estreia da cantora e compositora. Conversámos com Catarina Munhá sobre o álbum, as canções "onde vive" e sobre "isto" de ser... humano.

Isto de ser Catarina Munhá
Sony Music


Catarina Munhá diz que "ainda não sabe bem quem é", mas "também não tem pressa de descobrir". É coisa para se fazer com tempo. 

A ligação com a música começou cedo. O primeiro fascínio foi com o piano, mas Catarina também arranjou espaço no coração para o violino, guitarra ou para o "mais portátil" ukelele. Gosta de explorar, criar e multiplicar as possibilidades musicais. Compor e tocar ao vivo é como gosta de "comunicar com mundo", de conversar com os outros.

"Animal de Domesticação" é o nome do disco de estreia (que editou no passado mês de junho) e 'Isto de Ser Mulher' é o single mais recente que trouxe Catarina aos estúdios para uma boa conversa.

Esta quarta-feira (dia 9) e amanhã (dia 10), Catarina Munhá vai fazer a primeira parte do concerto de Samuel Úria no espaço Maus Hábitos, no Porto.


Como é que começou a tua ligação com a música? Sei que começaste a tocar alguns instrumentos quando eras muito pequena...


Comecei a "melgar" os meus pais, por volta dos cinco anos, para tocar piano. Deve ter vindo do meu avô que costumava tocar piano "de ouvido". Nunca aprendeu, mas gostava muito de tocar. Tenho algumas memórias vagas do meu avô a tocar piano. Os meus pais não me forçaram nesse sentido, eu é que comecei a "chateá-los" com a vontade que tinha de tocar música, sobretudo piano. Lembro-me da primeira aula de piano. Tenho a memória de ver a professora a abrir a tampa do piano e de eu estar a olhar para as teclas todas a pensar, 'uau'. (...) Fiquei deslumbrada. 

O teu avô era um autodidata, então. Transmitia-te essa forma de estar na música, a vontade de descobrir outras possibilidades, além do que é ensinado aulas?

Sim, a rebeldia é hereditária. O meu pai também toca "de ouvido", também é um bocado pirata, como costumamos dizer. Lembro-me que, quando me davam as partituras, estudava um bocadinho, mas quando conseguia tocar, largava as partituras e começava a inventar.

Começaste com o piano, mas também exploraste outros instrumentos, certo? Que outras paisagens instrumentais quiseste descobrir?

Sim, a seguir foi o violino. Fiz um workshop sobre vários instrumentos na Metropolitana [Orquestra Metropolitana de Lisboa], mostraram-me vários e achei muita piada ao violino. Sai de lá a dizer aos meus pais, 'vou tocar violino', ao que responderam, 'não, já tocas piano. Tem mesmo de ser mais um? Já chega.' (risos). Foi nessa altura que comecei a ter aulas, mas, para conseguir ficar lá, como eles têm um projeto de orquestra, teria de tocar um instrumento que pudesse integrar a orquestra. Fazia sentido que fosse o violino e também foi assim que consegui convencer os meus pais. 

Hoje em dia, tocas que instrumentos? Qual é o que te dá mais prazer tocar?

A grande paixão sempre foi o piano, mas também gostei muito do violino, sobretudo depois da experiência de ter tocado numa orquestra. Foi uma experiência imersiva, quase meditação. Foi muito bom mesmo. É difícil replicar esse sentimento quando tocamos a solo. Estar dentro da orquestra, fazer parte daquele organismo, que é maior que nós, é muito bom, mas o piano, para tocar para mim, sempre foi a minha paixão. Depois, como comecei a fazer canções muito cedo, precisava de ter um instrumento mais portátil, foi nessa altura que comecei a explorar a guitarra. (...) Houve um dia em que um amigo meu, o António Porém Pires, passou-me um ukelele para os braços. Disse-me, 'já que a guitarra é muito grande, experimenta lá isto'. Fantástico! É super portátil e consigo levá-lo para todo o lado. Nesse verão, chateei a cabeça a toda a gente porque andava sempre com o ukelele pendurado, atrás das pessoas, a fazer bandas sonoras de coisas aleatórias. 
 



És muito eclética desde pequena, tocavas desde Pink Floyd a Chopin. Era o que ouvias em casa?

Os meus pais gostam muito de música. Tive o privilégio de ter tido acesso a música incrível. Adoravam Pink Floyd, Beatles e também gostavam de música clássica. O meu avô tocava Chopin "de ouvido", como autodidata, o que é assim uma coisa um pouco estranha, mas ele gostava daquilo e tocava. (...) Na altura em que comecei a ter aulas, ficava fascinada com todos estes tipos de música diferentes. Música tão boa e tão diferente. (...) Gostava imenso de tocar música clássica, mas depois sentia que queria outras coisas, daí ter começado a explorar outras coisas no piano ou na guitarra. Cheguei a "revoltar-me", a agarrar no violino e ir para o Irish Pub tocar música irlandesa. (risos) Estava um bocadinho cansada daqueles virtuosismos, que são muito bonitos, mas queria explorar outros sons. 

Vais querer continuar a explorar as várias possibilidades da música?

Acho que sim. Sou um bocado inquieta, gosto de mudar e experimentar coisas novas. É algo que me dá muito prazer.

Também escrevias quando eras pequena. Nessa altura, escrevias sobre o quê?

Era super piroso. (risos) Era muito idealista. Escrevia sobre utopias, sobre um mundo em que toda a gente se dava bem, muito "paz e amor". Ou então sobre a natureza. Músicas e músicas que fiz sobre o mar e as conchas. Era de uma pieguice... (risos). Farto-me de rir com aquelas coisas, quando olho para trás.

Como é que é o teu processo de composição? Começas no ukelele, ao piano...? 

Normalmente, é uma melodia cantada com letra. Depois, com os acordes, é com o que tiver mais à mão. Se tiver à mão um instrumento, é com um instrumento. Se estiver ao volante do carro, começo... (som a bater com a mão), começo a cantar por cima e tento registar o som e os acordes, para não me esquecer. Já perdi muita música, quando não apontava.

 



Além de cantora e compositora, também és médica. Como é que "escoas" a criatividade no teu dia a dia?


É engraçado, as músicas surgem mais quando eu estou à espera de alguma coisa. É aquilo a que chamamos de default mode, quando estamos numa sala de espera ou no trânsito. Também acontece em casa quando estou a fazer uma tarefa que não requeira a minha atenção. (...) É mais nessas alturas. Parece que tenho uma bola de pelo a vir pela garganta. Nessa altura, eu percebo, 'ok, vai sair uma música'. Saco um papel ou o telemóvel para gravar e canto. (...) Quando ando a correr de um lado para o outro, sai menos.

Compor é algo muito natural para ti, não é?

Sim, é. Lembro-me de ser pequenina, de estar na praia e, lá está, de cantar belas odes de amor às conchas. (risos) 

"Animal de Domesticação" é o nome do primeiro disco. Como é que chegaste a este nome?

Senti que tinha uma bola de pelo para expressar e a bola de pelo saiu: 'não sou animal de domesticação. Guarda a trela, arranja um cão'. Sinto que, às vezes, nem sei se sou eu a dizer isto (risos). É uma voz que vem de algures, mas fui eu que cantei aquilo. (...) Nem sei bem, mas [o título do disco] vem do conceito de domesticar. Eu gosto muito de animais, mas faz-me alguma confusão vê-los presos, sem conseguirem sair. Eu sei que há animais que adoram estar dentro de casa e não fora, mas custa-me um bocadinho. Tinha um gato de rua que aparecia na minha janela. Dava-lhe comida, festas e ele ia à vida dele outra vez. Gostava de ter um animal assim, nesses moldes. Nem é bem tê-lo, ele está na vida dele e, às vezes, vem aqui. No dia a dia, com todas as rotinas, por vezes, sinto-me um animal domesticado, de domesticação. Tentei dar mais espaço ao meu animal mais selvagem. Ter um espaço para também ser livre, para poder ser eu.    

 


 

Na descrição do álbum podemos ler: "'Animal de Domesticação'" é sobre o espaço que habita cá fora e dentro das canções que a acompanham desde criança". Que espaço é esse, como o descreves?

O espaço fora é um rés-do-chão que aluguei e que estava vazio. Como sou um pouco preguiçosa nestas coisas de mobilar casa, estava bastante vazio. Tinha os instrumentos todos espalhados pela casa e eu sentava-me a tocar em cada uma das divisões. Faz um eco giro quando as divisões estão vazias (risos). O espaço interior tem a ver com as perguntas que estão na minha cabeça. Surgem-me sempre muitas perguntas. Sou inquieta, curiosa...
 




Dizes que ainda estás na idade dos "porquês", não é? 

A minha mãe diz que nunca me passou (risos).    

Isso é bom. Que "porquês" é que andam pela tua cabeça nesta altura da tua vida?

É uma coisa constante. Acordo e penso, 'porque é que meto o despertador, será que devia deixar a janela mais aberta e acordar com a luz? Se calhar era melhor do que acordar com o despertador'. Por vezes, é cansativo. (...) Porque é que temos de trabalhar cinco dias por semana, durante x horas, porque é que não podemos trabalhar mais ou menos horas, ter um horário mais livre, porque é que tem de ser das nove às seis, porque não optar por modelos diferentes? Isto até me leva a descobrir outras realidades, noutros países, outras experiências, coisas que são feitas de forma diferente. É interessante ver que há coisas que nós damos como adquiridas, mas depois descobrimos que afinal não, é só porque é tradição. Às vezes surpreendo-me com isso. 

Voltando ao disco, as onze canções foram feitas na mesma altura ou há algumas mais antigas?

São todas mais ou menos da mesma altura, da fase em que mudei para esta casa. Depois, juntei mais duas canções que tinham a ver com este espaço, esta ideia de casa, embora sejam mais antigas. Eu já compus em muitos estilos diferentes. Compunha muito inglês, quando era adolescente, depois em português e até já compus em francês. Fazia coisas mais country, outras mais pop ou mais rock, ia moldando. 

É mais difícil compor em português?

O inglês é mais melódico para encaixar nas canções, mas, como em tudo, é uma questão de hábito. Quando comecei a escrever em português, entrou rapidamente.

No tema ‘Águas-Furtadas’, há uma parte da letra em que dizes "vivo em águas-furtadas, no cimo de uma canção". Como é a vista do cimo de uma canção?

É, por exemplo, esquecer as chaves de casa... no cimo de uma canção. (risos) É a minha parte meio aluada. Estás nas águas-furtadas a compor canções e depois, nas questões do dia a dia, deixas queimar as panelas. Coisas que acontecem porque estou ali com a cabeça. Quando estou a fazer uma atividade em que é preciso concentração, estou focada, mas quando tenho tempos mortos, a minha cabeça entra neste "zum zum" e lá vou eu... para a estratosfera.   
 
 

 

Abordas alguns temas mais sérios com uma profundidade leve. Encaras certas questões com algum humor, o que acaba por torná-las menos pesadas. É também a tua forma de encarar a vida?

Eu acho que sim. É um mecanismo meu. Não sei se acontece com todos, mas acontece com muita gente com quem falo. Acho que isto de ser humano não é fácil. Isto de ter uma cabeça que pensa, que, às vezes, diz-nos coisas que não sabemos se são verdadeiras ou se são produzidas. Se deveríamos estar preocupados com isto ou com aquilo. Pensamos nas coisas que já passaram, no que pode correr mal no futuro. É difícil ter uma cabeça (risos). Acho que levo as coisas para a brincadeira porque o humor tira um pouco de peso a esta coisa de ser humano, que é difícil. Todos temos cabeças diferentes, mas acho que é uma forma de não levar demasiado a sério o que a minha me diz.

O single 'Isto de Ser Mulher' conta com a participação de Hélio Morais (dos Linda Martini). Como é que aconteceu esta união de forças criativas?

Foi incrível! Pareceu um "complô" do universo. Foi uma amiga comum que lhe mostrou uns vídeos, acho que nem os tinha posto ainda no YouTube. (…) A minha amiga conhecia o Hélio e achou que, sendo músico e agente, ele iria gostar. Mostrou-lhe… e, às tantas, o Hélio ligou-me. (...) Fui ao estúdio Haus, em Santa Apolónia, onde estava o Hélio e alguns elementos dos PAUS. Fomos lá gravar uma maquete, primeiro só com música, para ver como é que me sentia, ele sempre com muito jeito... para eu me ambientar. Correu bem. (…) As coisas começaram a andar para a frente e, quando dei por mim, estava a gravar um disco inteiro.  
 



Já tinhas a canção feita e depois o Hélio "entrou em cena", foi assim?

Sim, mostrei-lhe a versão inicial, só com "isto de ser mulher". O Hélio adorou. Começámos a conversar sobre estas questões de género e ele acabou por desabafar, de uma forma muito sincera e engraçada, sobre o que é ser homem, ser rapaz. Também tem as suas dificuldades. A questão de não poder ser emocional ou sentimental, ter de conservar aquela "masculinidade", isto muito entre aspas. Achei piada aquilo, fui para casa e escrevi mais um verso a pensar na parte do rapaz. Depois, achei que devia ser o Hélio a escrever os versos e a coisa ficar dividida num verdadeiro dueto. Foi assim que surgiu o verdadeiro dueto. Eu canto sobre "isto de ser mulher" e ele canta sobre "isto de ser rapaz". É maravilhoso. Eu acho que o que é difícil é ser gente.


O vídeo que serve o tema, realizado pela Joana Linda, tem tido um feedback muito positivo. Como foi fazer o vídeo?

É a cabeça da Joana que é incrível. Enviámos-lhe a canção, ela ouviu e acho que ficou submergida dentro da música. Enviou-nos um "alto" guião, do género: 'vamos fazer assim e assado, vamos usar este cenário e aquele'. Foi um dia muito bem passado, a correr de um lado para o outro, para filmarmos tudo em todos os locais. A Joana tem uma criatividade incrível. 

A letra, o dueto e a estética do vídeo passam uma mensagem sobre o que está culturalmente agregado à identidade de género... 

Eu acho que o facto de a Joana conhecer-nos ajudou a encaixar-nos na canção e também na parte visual. Ela sabia que eu adorava andar de skate, mas que já não pegava num skate há quinze anos. Naquele dia, pus-me outra vez em cima de um skate e até fiquei cheia de vontade de voltar. São pormenores engraçados, acho que a Joana incorporou um pouco de nós, um bocadinho da música e um bocadinho da mensagem. 

Presumo que estejas muito feliz com o disco. Como é que tem sido o feedback?

Tenho recebido imenso carinho que não estava à espera. Confesso que tinha algum receio que algumas das minhas perguntas fossem descabidas, estas questões que eu tenho. É tão giro quando as pessoas me dizem que têm as mesmas questões. 
 



Agora que as pessoas estão a descobrir as tuas canções, a viver dentro das tuas canções, o que é que gostarias que acontecesse no futuro?


Sempre tive alguma dificuldade em vislumbrar o meu futuro. A minha vida costuma dar muitas voltas e costumo acabar em sítios que nem imaginava que fosse para lá. Com este disco foi assim. Antes de receber a chamada do Hélio, a minha vida estava muito diferente. Gostava de gravar mais canções e continuar a tocar. Gosto dos concertos, sobretudo dos mais pequeninos. Quanto mais intimistas, mais a experiência é próxima das pessoas. É quase uma conversa. Cantar e tocar canções é a minha maneira de conversar. É muito bom ouvir as pessoas de volta. Cria-se uma conversa profunda, boa à volta das nossas fragilidades e inspirações. Quero continuar a fazer música.

O que é gostas realmente na música, que possibilidades é que te oferece?

É a minha maneira de comunicar sobre o mundo, que adiciona uma espécie de magia ou de mística às coisas do dia a dia. Passa-lhes um filtro de transcendência, talvez.


No início de outubro, Catarina Munhá subiu ao palco do MusicBox, em Lisboa, para fazer a primeira parte dos concertos de Samuel Úria. Hoje e amanhã é a vez de partilhar o palco com o músico no espaço Maus Hábitos, no Porto.


Tens estado a partilhar o palco com o Samuel Úria, como é que tem sido a experiência?


Foi muito entusiasmante. (...) Foi tão bom que até ia perdendo a voz de quinta para sexta porque depois fiquei na plateia a berrar. (...) No dia a seguir, estava um pouco rouca da emoção de estar a cantar as músicas dele. Tem sido uma aprendizagem incrível com ele e com os músicos que tocam com ele. Estarmos ali no ambiente de soundcheck e vermos como é que eles ensaiam, como é que ajustam o som, como é que se organizam. É uma aprendizagem imensa estar ali a conviver com eles. Está a ser uma experiência muito enriquecedora.