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Ornatos Violeta: em casa com um "sorriso maior"

A banda portuense esteve em casa para "partir tudo". Corações ao alto, o nosso está com os Ornatos. O segundo dia do MEO Marés Vivas foi histórico. Hoje há um sorriso maior em toda a parte.

Ornatos Violeta: em casa com um "sorriso maior"
Rúben Viegas

Se uma vida não chegou, os Ornatos hão de ter "cem vidas mais, quantas mais ditar o coração". Se não for a vida a cinco em cima do palco ou na partilha criativa no estúdio, será na infalível existência das canções sem um prazo que possa ser ditado pelos desígnios do homem. A noite de ontem teve um "travo a tudo". Houve amor (muito) à beira do Douro. Amor por uma banda que nunca deixaremos morrer. Nunca.

Temas épicos do Cão (álbum de estreia). Raridades. Uma versão dos Violent Femmes (para Manel Cruz, "a maior banda do mundo"). Uma relíquia dos primórdios dos Ornatos. Uma versão dos Da Weasel com Carlão no palco. Manel no chão, rendido. Afeto cúmplice e comovente entre os cinco músicos. Um final demorado, entre abraços e autógrafos às filas da frente. Três encores. A música da Raquel. Um agradecimento coletivo, honesto com olhares brilhantes. Terá sido este um dos concertos de uma vida inteira? Muito provavelmente

Os Ornatos acabaram em 2002. Doeu a todos. A nós e a eles. O mundo foi mudando, sem grande compasso de espera, mas o monstro foi crescendo. Não cresceu à toa. Foi alimentado pela forte amizade que une os cinco músicos desde a casa da partida. Pelos concertos que arrastaram uma geração e pelas proezas discográficas (poucas mas essenciais) que serviram de autênticos manuais de sobrevivência para os tremores emocionais de muitos. Ajudaram, e de que maneira, nas dores de crescimento de uma geração que ainda grita por eles de mão ao peito. Da geração que veio depois também.

Sem mais demoras nas contemplações poéticas, vamos ao que interessa. Os Ornatos partiram tudo numa casa (a deles) a rebentar pelas costuras.

Para os portuenses de gema, o MEO Marés Vivas, não é um palco qualquer. Os cinco bons rapazes tocaram em casa. Os instintos dos fãs mais dedicados terão previsto que era coisa para ser especial, com direito a mimos extra, além do álbum "O Monstro Precisa de Amigos". Claro que foi. Foi ainda mais além do que qualquer amante de Ornatos pudesse imaginar

A primeira a fazer estremecer o recinto foi 'Um Crime à Minha Porta' do álbum de estreia, "Cão".  "Isto é voltar sem dor nem mágoa. Isto é só mais uma razão p'ra estar sem ninguém por ti", cantou Manel Cruz, ainda meio escondido no capuz do casaco que trazia vestido (uma das várias camadas de roupa que levou para depois despir). O arranque, em tons avermelhados lá atrás, mereceu um brinde. "F***-se, à nossa!", veio da voz de um Manel feliz com o coração a latejar de emoções boas, talvez com o passado e presente entrelaçados no momento que estaria a "fotografar" com a memória. 

Sentir os segundos iniciais de 'Tanque' (a primeira faixa do "O Monstro Precisa de Amigos") teve intensidade para provocar arrepios em espinhas de todas as idades, com Manel Cruz a levantar os braços quase até aos céus, à medida que exclamava, "eu vou bem". Era então tempo de ouvir algumas das tais canções da celebração dos vinte anos do disco que mereceu a série de três concertos de regresso aos palcos dos Ornatos. A intimidade de 'Para Nunca Mais Mentir' pousou as emoções mais agitadas para dar lugar a outras, mais calmas, igualmente profundas. 

'Há de Encarnar', a raridade que ficou fora dos discos, seguiu-se na voz de Manel Cruz que tão bem se atirou à letra, prolongando-se nesta com sede de catarse, a arrastar-se para honrar o desespero da causa. A experiência metafísica abriu caminho para uma versão histórica de 'Ouvi Dizer' com Carlão a entrar de repente no palco para fazer a vez de Vitor Espadinha na poesia declamada. "Em toda a parte a palavra Ornatos repetida ao expoente da loucura", declamou. A balada, que agora é de todos, foi cantada a milhares de vozes. Alguns com o coração dorido, outros já com o músculo cardíaco recuperado, mas todos cheios e ao alto. Há espanto e brilho nos olhos do Manel Cruz, felicidade nos gestos de entrega e nas subtilezas cúmplices com Peixe, Nuno Prata, Elísio Donas e Kinörm, estes também felizes. Os Ornatos voltaram e o amor não acabou, ouvimos dizer. Ainda os corações estavam lá em cima e o Carlão no palco, quando começamos a ouvir 'Casa' que o vocalista dos Ornatos gravou com os Da Weasel há coisa de mais de uma década. Manel e Carlão juntos, felizes e com um sorriso maior a cristalizar o momento. "Carlãooo", gritou Manel. Os dois grandes porreiraços da música portuguesa estavam emocionados com uma maré de gente a agradecer para dentro o que ambos deram à música que se faz por cá. Que privilégio ver isto.

Uma das mais aguardadas, 'Chaga' chegou com um autêntico motim instrumental a abrir caminho para as dores lancinantes de amor cantadas por todos, agora com Manel Cruz já sem t-shirt. Era uma questão de tempo até desfazer-se da última camada de roupa. Nisto do rock n' roll suado, a transpirar verdade por todos os poros, a roupa atrapalha

 


'Notícias do Fundo', já com o frontman da banda nortenha à mercê da guitarra acústica, arrancou aplausos sentidos na frase visionária “acendeu-se a luz, estão vivos outra vez”. Quem diria que esta parte da letra iria ser tão simbólica em 2019?

Ouviu-se 'O.M.EM.', a começar o "estender de mão" mais entusiasmado e destemido de sempre. As ameaças da guitarra de Peixe entrelaçaram-se nas confissões de Manel, como nos bons velhos tempos. "Foi tão bom para mim, como foi para ti", cantou até à boa exaustão, ajoelhando-se para um final apoteótico, visceral e orgásmico.

Seguiu-se 'Dia Mau'. Quando demos conta Manel já estava outra vez no chão, agora sentado, a contemplar, com demora, a multidão. 'Para-me Agora' levou-nos até 'Coisas', com lágrimas a cair perto de nós. "Pensa que há quem viva do teu calor", ouvia-se. Quantas vezes teremos citado o Manel em conversas lamuriosas com amigos, a sublinhar sobretudo a frase de conforto? Muitas, certamente. "São coisas, são só coisas" entoava-se à beira do Douro. Sim, são as nossas coisas, cada um com as suas. "Eu estou bem, quase tão bem", a servir de prenúncio de vida para ser continuada. E foi, que digam os olhos reluzentes de Manel. 'Dama do Sinal' foi o regresso ao Cão, com um piscar de olho do carismático vocalista na parte da letra mais malandra. "Muito obrigado, pessoal. Está a ser incrível”, disse Manel. Contagem até três para a chegada do 'Capitão Romance' com quem navegámos a favor das marés. Os Ornatos ainda prestaram homenagem aos Violent Femmes com "Gone Daddy Gone" tocada com o Manel a dar tudo de um lado para o outro do palco. "Isto é uma cena muito lambareira. Amanhã temos de pousar", disse. 'Fim da Canção' chegou para fazermos isso mesmo: começar a pousar.

Para o final, 'Como Afundar' e 'Raquel'. Esta última com todos os músicos alinhados no palco a passar o microfone de mão em mão. 'Dias de Fé' acalentou a esperança de qualquer coisa para o futuro quando já estávamos demasiado perto do fim.

Uma noite de pica cúmplice entre amigos. Houve afeto, abraços e contemplação feliz com uma maré de amor aos pés. A despedida foi demorada com três regressos ao palco. Ninguém queria ir embora. Nem nós, nem eles.
 
Sentimos que os Ornatos querem sempre dar-nos "alguém melhor" em todas as vidas que encarnam, mas na verdade sempre deram, desde a primeira. Só nos resta agradecer.