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Miguel Araújo saído da casca

Espetáculo intimista no Tivoli, de um contador de histórias humorado que esteve só e bem acompanhado.

Miguel Araújo saído da casca

O espectáculo "Casca de Noz" - que acaba de cumprir a primeira de duas noites no Tivoli, em Lisboa - é uma espécie de revisão da matéria dada por Miguel Araújo, que faz regressar ao berço do criador solitário um manancial de músicas que foram sendo cantadas por outros ou que estiveram ao serviço de algo maior que o seu quarto: para Os Azeitonas (onde já não está) ou para a banda que o acompanha no seu trajeto individual.

Miguel Araújo esteve só e bem acompanhado. Armou-se em forte, qual Jorge Palma, e mostrou a polivalência dos praticantes de pentatlo moderno. Só que em vez de se desdobrar entre piscinas, pistas de atletismo e picadeiros, mostrou o seu à-vontade multi-instrumentista entre o ukulele, o piano, as guitarras acústica e elétrica e tudo o que desse para fazer percussão, sem mais ninguém em palco. Mas nunca esteve verdadeiramente só. Teve o público com ele. E contou com a envolvência de muito mais gente que a aparência de pequena produção poderia fazer supor. A cenografia (pela mulher de Miguel Araújo, Ana Sequeira) era simples mas cuidada: ao lado do que parecia uma instalação de ares cubistas, uma disposição amuralhada de instrumentos tão bonita que quase parecia uma instalação. A combinação dos vídeos com as poucas luzes tinha uma sobriedade intimista. 

A economia de meios visuais dava margem para Miguel Araújo mostrar o seu talento de contador de histórias de forma humorada, com aquela minúcia apurada de escritor, sempre a desvendar comparações curiosas em cada observação que faz. Transporta consigo a sua infância e adolescência, isto é, o aconchegado Porto e as suas redondezas, a descendência familiar de classe média-alta, o amealhar das reminiscências letristas de Carlos Tê e musicais de Rui Veloso numa só cabeça, a resistência granítica e orgulhosa de forasteiro nas fugas (à Reininho) para Lisboa e para o sul, sempre com o eterno regresso ao húmido e verdejante Douro Litoral na mente.  

As crónicas cantadas de Araújo vão sendo salteadas cronologicamente - 'Nos Desenhos Animados (nunca acaba mal)', 'Lourdes' – com uma projeção de letras atrás que o músico não precisa de ler e que só são cábulas para o público.

'José' merece uns desenhos animados bonitos, daqueles que se viam nos blocos de Vasco Granja. Depois, para ilustrar Via Norte, a sessão de cinema torna-se mais pessoal, com a projeção de filmes domésticos antigos do avô de Miguel Araújo, onde se vê a piscina da casa de família 

O fantasma de Marcelo Camelo ocupa a seguir a tela para cantar em dueto 'Valsa Redonda', antes da 'Romaria das Festas de Santa Eufémia', já com Miguel Araújo a dedilhar a sua guitarra clássica 

'Sangemil' é um refúgio tão especial nas memórias do cantor que merece o título de uma canção, que foi dedicada aos Kapas, a banda part-time dos anos 60 e 70 dos seus tios. Em 'Reader's Digest', Miguel Araújo é um one man's band com pedal percussivo a jeito, já a puxar por uma guitarra mais bluesy e elétrica. 

Miguel Araújo volta a descer até Lisboa e às memórias de adolescência do acidentado concerto dos Guns N' Roses no antigo Estádio de Alvalade em 1992, em 'Axl Rose', onde não é esquecido o tropeção em palco do vocalista norte-americano, por causa de uma garrafa de plástico. 'Recantiga' é sussurrado pelo público. 'Catavento da Sé' merece o acendimento de telemóveis, perdendo a sala a sua escuridão de cinema ao ganhar uma média luz.  
 
O itinerário pelos centros comerciais da Invicta em '1987' merece um acompanhamento de palmas do público muito rítmico. Mas Miguel Araújo não se mostra convencido e opta a seguir pela samplagem ao vivo por João Brandão de vários instrumentos de percussão tocados pelo cantor, tal como acontece em 'Fizz Limão'. Para fechar o set, 'E Tu Gostavas de Mim' tem um arrebatamento em modo folclore, com Miguel Araújo a acicatar-se em solos de ukulele. 

No primeiro encore, ninguém resistiu ao pedido de Araújo em 'Anda Comigo Ver os Aviões', com o público a descolar as suas vozes, num levantamento que correu bem. No segundo encore, uma senhora afoita dirige-se ao palco para pedir a Miguel Araújo que tocasse 'Cartório', que o músico dedicou à sua mulher, Ana Sequeira.   

Foram (quase) duas horas muito bem passadas.