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Viagem à Rússia: do vodka ao hóquei no gelo

A condição de anfitriã e a grandeza territorial de um país que ocupa dois continentes está a valer pouco no relvado.

Viagem à Rússia: do vodka ao hóquei no gelo

A Rússia tem o estatuto de anfitriã do Mundial. Terá mais algum estatuto? Tem, é o último país participante a ser analisado no dossiê sobre o Rússia 2018, a última de 32 viagens que transcende o desporto-rei.  
 
Futebol atual
Não se pode falar de um mau sorteio para a seleção anfitriã da maior competição desportiva deste ano. Egito, Arábia Saudita e Uruguai são adversários considerados "simpáticos", mas à atenção dos russos tem de estar a participação na Taça das Confederações, em 2017. Na antecâmara do Mundial, a Rússia perdeu com Portugal e México e acabou por ficar de fora, precocemente, da competição. Nada de novo, tendo em conta as três últimas participações em Mundiais, onde acabou por não passar da primeira fase (1994, 2002 e 2014). A preocupação sobe de tom, tendo em conta os resultados desportivos em 2017, entre particulares e oficiais, com apenas três vitórias em onze jogos, fechando 2017 num modestíssimo 64º lugar no ranking da FIFA

Depois da saída de Slutsky, cabe a Stanislav Cherchesov inverter a tendência dos últimos anos e devolver qualidade a uma Rússia ainda em transformação. O veterano guarda-redes Akinfeev é, agora, o único "filho" do reinado de Slutsky, depois de sairem da seleção jogadores como Ignashevich e os irmãos Berezutski. Nas atuais figuras, Smolov, avançado do Krasnodar, é a figura principal de uma equipa que conta ainda com os conhecidos Dzagoev (CSKA) e Kokorin (Zenit), num onze com muitas dúvidas, a começar pelo esquema tático, depois das alternâncias entre o 3.5.2, o 5.4.1 e o 3.4.2.1. Como potenciais jogadores revelação, apontamos olhares para Miranchuk (avançado de 22 anos do Lokomotiv) e Golovin (médio de 21 anos do CSKA). 

 


 
Yachine, o gigante que apequenou a baliza
A Rússia é a herdeira direta - e uma sombra - da implacável União Soviética. É ao abrigo desta superpotência extinta que pode reclamar o primeiro título de campeão europeu das nações em 1960, tendo derrotado na final outro grande Estado já extinto, a Jugoslávia, por 2-1, no Parque dos Príncipes, em Paris. A grande estrela estava na baliza, Lev Yachine de seu nome, o "Aranha Negra". Desde então, o grande país euroasiático tem sido uma fábrica de grandes guarda-redes, Dasayev incluído (alô anos 80!).


Se a nível da seleção, os resultados empalideceram, a nível clubístico, com ajuda do dinheiro vindo do petróleo para comprar estrelas internacionais, o futebol russo passou a ter troféus de competições europeias de monta nos seus museus, em nome do CSKA Moscovo e do Zenit St. Petersburg, cada um com uma Taça UEFA. Se os sportinguistas ficaram traumatizados com a desfeita do CSKA Moscovo em pleno Estádio de Alvalade na final da Taça UEFA de 2005, e se os benfiquistas se lembram ainda das peripécias de Yuran e de Kulkov que davam manchetes de jornais, já os portistas têm melhores memórias dos russos, em especial desse grande médio, Alenichev. Foi ele que fechou a contagem do 3-0 frente ao AS Monaco, que deu a última Liga dos Campeões ao FC Porto, em 2004.   
 


 
A música clássica dança-se
É na música clássica que a Rússia joga forte. Das levas de grandes compositores ao longo dos séculos XIX e XX, o mais reconhecido é sem dúvida Tchaikovsky (1840-1893), que se destacou em peças de bailado como "O Lago dos Cisnes" ou "O Quebra-Nozes", que jamais largarão as nossas agendas de espetáculos, sobretudo no Natal. Rachmaninoff, Stravinsky ou Prokofiev são outros nomes russos com que os melómanos de música erudita se familiarizaram.


Na música folk, é da zona asiática da Rússia que se têm notabilizado as várias polifonias da república do Tuva (vizinho da Mongólia), através do throat singing, o cante de garganta. Respetivamente na pop e no punk de intervenção, são internacionalmente conhecidas as t.A.T.u. e as Pussy Riot, mas nenhuma delas por razões propriamente musicais.
 


 
Tudo à batatada
E se fossem permitidos os piqueniques junto aos estádios do Mundial, como acontece nos rituais futebolísticos em Portugal, o que levariam os russos? Provavelmente, carregar-se-iam de termos com sopas (que os russos tanto adoram), as mais prováveis delas a sopa de couve e de beterraba (a sopa borshch) e a sopa de peixe (conhecida como solianka que reúne várias espécies marítimas e sobretudo fluviais). Para os brindes à seleção russa, não pode faltar a vodka, a bebida alcoólica por excelência da Rússia, destilada a partir da fermentação de produtos como a batata - o alimento mais recorrente da cozinha russa. A vodka é talvez o único elo de ligação do povo com os oligarcas russos que vão ver os jogos em tribunas luxuosas, onde não faltará a alta cozinha russa, de tradição imperial desde o tempo dos czares, mas onde se deve comer o melhor tipo de caviar, como as belugas, em saladas de caranguejo ou, nos casos mais informais, em crepes (a que os russos chamam de blinis).


Há referências gastronómicas do país euroasiático com que já estamos familiarizados como a salada russa (o tal prato frio de ervilhas, batatas, cenouras e, às vezes, de frango, coberto de maionese, a que os russos ainda acrescentam presunto), popularizado no histórico restaurante moscovita Ermitage, ou o molho tártaro (também assente em maionese). Em Portugal, há já vários restaurantes de comida russa como O Tapadinha (em Alcantâra) e as duas casas Stanislav (na Avenida da Liberdade e em Cascais).
 


     
Montanha russa
A Rússia tem os contrastes típicos de ser o maior país do mundo. Politicamente, associamo-lo à austeridade, nos rostos inexpressivos do Presidente Putin ou dos idosos comités do PCUS (dos tempos da União Soviética), ou na opulência czarista e da igreja ortodoxa. Mas é também da política que se sente a grandiosidade artística, no cinema de regime do cineasta comunista Sergei Eisenstein, que encenou a Revolução dos Bolcheviques de 1917 no clássico do cinema mudo, "O Couraçado Potemkine" (de 1925), obra que inovou a forma de se fazer montagem na sétima arte. Noutro tipo de cinema mais poético, destacaram-se, umas boas décadas adiante, Andrei Tarkovsky, ou nos tempos de hoje Alexander Sokurov, que tem como um dos maiores feitos "A Arca Russa", filmado num monumental plano-sequência de 96 minutos (de 2002), num dos palácios sumptuosos de São Petersburgo.


A dança é outra das artes por excelência da cultura russa, que tem como um dos epicentros o Teatro de Bolshoi (em Moscovo) e teve como um dos seus maiores ícones internacionais o bailarino Rudolf Nureyev (1938-1993). A literatura russa também tem o seu peso nas livrarias e bibliotecas de todo o mundo. A.K. Tolstoy (através de "Don Juan"), Leo Tolstoy (que escreveu "Guerra e Paz" e "Anna Karenina"), Fiódor Dostoiévski (autor de "Crime e Castigo"), Nabokov (que nos deu "Lolita") ou Solzhenitsyn (que nos relatou o que se passava no "Arquipélago de Gulag") pejaram-nos de clássicos.


Mas há muito mais Rússia nas nossas vidas do que pensamos. Quem não conhece as máquinas fotográficas LOMO? Quem já não ouvir falar das espingardas Kalashnikov que armaram tantos exércitos e guerrilheiros? E quem não viu alguém que tenha como decoração caseira as famosas Matrioskas, a série de bonecas russas de madeiras que se encaixam umas nas outras? E a nível de tecnologia, habituámo-nos às missões espaciais soviéticas e russas. Era russo o primeiro homem no espaço: Yuri Gagarin, o astronauta que se antecipou aos rivais americanos.
 
 

 

Textos: Gonçalo Palma e Paulo Rico