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Joana Espadinha: "é preciso chegar aos 40 para assumir o que penso"

Está cá fora o seu novo álbum "Vergonha na Cara", a merecer entrevista.

Joana Espadinha: "é preciso chegar aos 40 para assumir o que penso"
Joana Linda

Joana Espadinha viaja para dentro de si própria, à adolecente que foi e à adulta mais madura que é, no novo álbum "Vergonha na Cara", que sai nesta sexta-feira. Joana Espadinha perdeu a vergonha na alma, num jogo entre a auto-opressão do passado e o gozo do presente. O novo produtor António Vasconcelos Dias participa neste novo ciclo de Joana Espadinha.

Há uma ideia de recomeço em todo o álbum? 
Acho que sim, não foi consciente o recomeço, mas penso que foi um recomeço porque os meus discos foram todos muito diferentes. Do segundo ["O Material Tem Sempre Razão", de 2018] para o terceiro ["Ninguém Nos Vai Tirar O Sol", de 2021] houve uma lógica de continuidade. E de repente eu tive saudades de escrever também outro tipo de canções, algumas mais melancólicas, mais sombrias, porque eu também gosto muito da folk e de dar mais espaço nos arranjos para a voz soar, e então quis voltar a recuperar alguma escrita que eu tinha no meu primeiro disco, no "Avesso", que ainda era muito ligado ao jazz. E no fundo, é isso. Foi de facto um recomeço também porque trabalhei com um produtor novo, o António Vasconcelos Dias, e também com o Ben Monteiro, que fez o primeiro single. E andei muito à procura daquilo que eu realmente queria, porque gosto de muitas coisas diferentes. Às vezes demoro a decidir-me. E às vezes vou atrás de muitas influências e posso me perder pelo caminho. Senti que este disco foi mesmo do início ao fim aquilo que eu desejava. E sim, para mim também é um recomeço na minha carreira também. 

Parece haver também no disco, através das letras, uma vontade de independência. Estou a pensar, por exemplo, em músicas como 'Vergonha na Cara' ou 'Vestir a Camisola'. Transpira nas letras a vontade de viver o momento e de gozar a vida?
Acho que é uma independência, mas não é só uma independência naquele sentido que temos falado, a libertação da mulher, e esta forma de nos capacitarmos e de percebermos que tudo é possível, que tudo nos está ao alcance também. Na verdade, também é uma independência de mim própria e daquilo a que eu me condicionei nos anos que passaram... alguns preconceitos, o tipo de música que tens de fazer, aquilo que és capaz de fazer, as minhas vozes interiores também. Por isso é que este disco se chama "Vergonha na Cara", porque eu não quero ter vergonha na cara de ser quem sou. Mas às vezes também é preciso saber quem somos para fazer esse percurso. Também foi um processo muito importante de descoberta para mim neste disco. 

Joana Espadinha

Há até versos fortes, como por exemplo, em 'Vergonha na Cara' – "tira a mordaça da noite calada, vou rasgar esta saia travada" – ou em 'Vestir a Camisola' – "ontem saí à rua para criar confusão". 
Também há uma parte que é "wishful thinking" ["ilusão"], não é? Eu acho que as coisas que eu conquistei na vida foi a ir atrás de coisas que eu desejava ser, porque no fundo é aquele "Fake It Until You Make It" ["finge até conseguires"], não é? Enquanto não temos a visão daquilo que podemos ser e que podemos conquistar, não achamos que é possível. E mesmo que seja um bluff, nunca é um bluff porque ninguém pode prever o futuro. Portanto, se estamos a fazer um bluff, que seja um bluff positivo. Há também uma temática que está presente no disco que é resolver a adolescência. Eu era uma adolescente muito tímida e com muitas dúvidas, ficava a maior parte do tempo calada a ouvir as opiniões dos outros sem manifestar a minha. E essa canção também fala muito disso e pronto, se calhar, é preciso chegar aos 40 [anos] para se assumir realmente o que se pensa. Por isso, sim, o 'Vergonha na Cara' é mesmo essa afirmação, esse grito do Ipiranga, que pode criar alguma confusão, mas eu acho que a arte também serve para criar alguma confusão. Pelo menos, faz-nos questionar as coisas. 

Joana Espadinha

Há uma característica autobiográfica de alguma maneira? 
Tem sempre. Eu podia negar, mas não dá. O Chico Buarque costumava dizer, "é tudo mentira", porque era tudo verdade de alguma forma, mesmo que não seja de uma forma literal. Portanto, a minha música é sempre autobiográfica, mas às vezes eu posso estar a falar de alguém que eu conheço e não de mim própria. Mas sim, tem esse peso autobiográfico.

Sente-se uma atitude optimista de recomeço e de viver e, ao mesmo tempo, parece haver em todas as músicas uma mágoa de algo passado, sempre com um fundo melancólico.
A vida nunca é 100% feliz, e acho que se fosse era estranho. Só podemos aproveitar o doce se tivermos também o amargo. E o amargo define-nos como pessoas. As nossas experiências são absolutamente essenciais para quem escreve música, porque, se não, para quem ouve parece que não é verdadeiro. E portanto esse tom melancólico é necessário e a minha música sempre teve isso. Há uma vertente mais pop e mais soalheira, mas eu tenho sempre muito gosto em combinar com um bocadinho de melancolia. Há canções que parecem ser felizes e que não o são inteiramente. Portanto, eu gosto muito desse jogo. No fundo, quando reflectimos sobre as nossas experiências, vamos sempre falar daquelas que também foram mais negativas. Por exemplo, neste disco, tenho uma canção que se chama 'Alibi' e essa canção fala do desconforto que eu sinto com esta plasticidade que existe nas redes sociais e nos meios digitais, que são absolutamente essenciais para divulgar o nosso trabalho, mas que também muitas vezes nos obrigam a expor mais do que queremos, ou a fingir ser o que não somos, e também a espreitar as vidas dos outros e aquilo que os outros partilham, a assumir que aquilo é a realidade, quando muitas vezes não é. Portanto, cria-se aqui uma falsidade. Isso é uma coisa com a qual eu me debato muitíssimo e que quis que ficasse gravado numa canção. Têm um impacto enorme na saúde mental dos adolescentes, que é uma coisa que me preocupa muito. E portanto, no fundo, há uma frase que é "a geração não dá mais". Não dá mais para fingir que está tudo bem, não dá mais para acreditar nos sonhos do passado, como é que agora nos reinventamos. Portanto, também foi uma coisa que eu quis falar neste disco. Mas também não foi um fio condutor muito consciente. Eu faço sempre assim, vou escrevendo as canções e depois tento perceber qual é o tema que está presente e este acabou por ser um deles. 

Joana Espadinha

Falaste nesse tema do Alibi, sobre as redes sociais. De alguma maneira, também falas na faixa seguinte, 'Será o que Será', das redes sociais em que dizes que desligaste da net e que ficaste com a cabeça desligada.
Essa é a música talvez mais inocente e mais feliz, porque essa canção vai mesmo para o final da infância e início da adolescência. Esse tema, sim, é muito voltado para viver o presente, porque as pessoas como eu, que estão sempre a viver no futuro e pensam e repensam em tudo, acabam por perder parte da experiência. Essa canção foi uma carta à Joana dos 13 anos para lhe dizer: "olha, vai correr tudo bem". Parece o slogan do Covid, mas não te esqueças de viver o momento porque esse momento não volta. 

O que é que mudou com a produção do António Vasconcelos Dias na tua música? 
Eu já conhecia o Tony - é como nós lhe chamamos -, ele é um músico que participa em inúmeros projetos e que inclusivamente trabalha muito com o Benjamim, que foi o anterior produtor. [António Vasconcelos Dias] começou por ser diretor musical da banda que voltou. Eu estive algum tempo parada sem concertos e voltámos aos palcos no ano passado e quis dar uma volta no repertório e recuperar algumas coisas dos discos antigos e era preciso fazer um trabalho grande porque a banda estava há muito tempo sem tocar. Como gosto muito dele pessoalmente também, e admiro-o, chamei-o para ser diretor musical e correu muito bem. Gostámos todos muito de trabalhar com ele, porque é uma pessoa que, além de ser muito talentosa, é muito dedicada a todos os aspectos mais técnicos. Por exemplo, eu gosto muito de compor e de trabalhar no Logic [Pro, aplicação de composição] e fazer os primeiros arranjos. Mas depois há uma data de questões técnicas e especificidades que me escapam completamente e o Tony domina-as completamente. E depois, falta-me muito o "know how" de produção, porque eu imagino uma estética para uma canção, mas não consigo concretizá-la em termos mais práticos. E ele conhece uma data de sons, pesquisa sons de teclados novos. Trabalhámos muito com a MPC para programar alguns beats eletrónicos que colam com a bateria, mas depois também gostamos do lado mais orgânico da música, de ouvir sempre uma bateria real. E tem este lado de geek, no bom sentido, que é o melómano, de querer descobrir coisas novas, descobrir soluções. Passámos imenso tempo a ouvir discos. "Olha, eu acho que para esta música o que tu querias era uma coisa mais neste estilo". Mas foi uma parceria, de facto, porque acredito que as coisas são muito melhores quando nós temos alguém para debater ideias e para dar o input e para discordar às vezes. Senti mesmo que foi uma parceria, não houve uma hierarquia de nenhum dos lados. 

Há um elo em comum nos teus últimos discos que é a Margarida Campelo. O que é que a Margarida tem de tão especial para ti?
Para já, é uma das minhas melhores amigas e é uma pessoa mesmo excecional. E, depois, é um talento. Eu já sabia há muito tempo do talento da Margarida e estou muito feliz que ela finalmente tenha lançado um disco em nome próprio ["Supermarket Joy", lançado no ano passado"]. É um disco incrível, de um bom gosto do caraças. Para mim, é uma das cantoras de referência deste país. Tem muito bom gosto, um timbre lindo, como aliás a mãe dela [Isabel Campelo] também. E depois é uma instrumentista, tem tocado sempre teclas nos meus projetos e nos Cassete Pirata, banda da qual eu também faço parte. E portanto é um misto de admirar o talento dela e de ter uma relação pessoal muito boa. É uma pessoa que eu adoro ter na estrada. Quando ela não pode vir por alguma razão, eu fico sempre um bocadinho triste porque ela me faz falta. 

Joana Espadinha

Sentes que vais ser cantora pop para sempre? É na pop que tu te sentes mais tu própria?
Não. Ou seja, este disco reflete um bocadinho esta procura, porque comecei por ser uma cantora de jazz. Mas, na verdade, quando comecei a cantar, interpretava música alentejana quando era miúda. Cantei peças clássicas quando estava no coro. Também houve uma altura que quis cantar rock. E quando estou com os Cassete, canto rock. Portanto eu não sinto tanta necessidade de me definir e de fazer só uma coisa. Houve uma vez que um amigo meu me disse que "artista que é artista desilude os seus fãs". Porquê? Porque não fica sempre a fazer a mesma coisa. E nesse sentido eu quis que a minha música fosse agora por outro caminho e tivesse no fundo coisas mais edgy, mais estranhas, mais ousadas. Algumas dessas canções não são tão mainstream e está tudo bem porque tenho muito orgulho nas canções e estou com muita vontade de as tocar ao vivo. E pronto, já não tenho aquele fetiche da fama eterna e de fazer 200 datas por ano. Isso é cada vez mais difícil, mas sinto que este é o disco que eu queria deixar ao mundo e por isso estou bastante feliz com esta decisão. Gosto de cantar, por exemplo, o Bala Perdida, que é uma canção folk, não é uma canção pop-rock. Provavelmente, até é uma canção que tem duração a mais para ser considerada um tema pop. Se eu cantar e tentar ser demasiado a Celine Dion numa canção pop, a mensagem pode perder-se. E portanto nem sempre há espaço para a voz estar totalmente livre, porque, às vezes, ela está a fazer aquilo que é necessário para aquela canção. Se calhar num tema em que o arranjo - seja mais simples, seja mais acústico - eu posso interpretar de outra maneira. E portanto, são todos esses lados de ser cantora que me agradam e por isso é que não gosto de pôr só um rótulo. 

É como a Kate Bush, não é? Ela é cantora pop mas desdobra-se noutros géneros. Não consegue caber só na pop. 
Eu adoro a Kate Bush. É muito engraçado que o Running Up That Hill, gravado há tantos anos, ganha de repente, por causa da série [Stranger Things], notoriedade junto de crianças e adolescentes. Ainda por cima, foi produtora da sua música, é detentora dos direitos da sua música e isso é mesmo espetacular. 

Fala-se dos teus 10 anos de percurso discográfico. Não contas como o teu primeiro disco de todos, o mais jazzístico, "At Fuse&Jazz". Porquê? 
Quase ninguém conhece esse disco, é muito engraçado. 

Eu nem o consigo encontrar no YouTube.
Não está, porque esse disco não foi uma edição comercial. Houve um espetáculo que vim fazer de jazz, a Portugal, quando estava na Holanda, chamada pelo Luís Mergulhão, que é uma pessoa que me apoiou muito nessa fase e pai de um grande amigo meu. Ele queria fazer uma festa para uma das suas empresas, a FUSE. E na altura a equipa de produção queria trazer um grupo de jazz. E ele disse: "não, eu conheço uma rapariga que canta jazz e ela é que vem". E eu vim para Portugal e começaram ligar-me. "Olha, a Joana não tem nenhum CD para oferecermos aos nossos clientes". "Não, não tenho nada com qualidade para editar". E depois ligaram-me. Passaram dois dias e disseram-me: "já está tudo tratado, vem três dias para a Valentim de Carvalho gravar. Está tudo pago. Escolhe umas canções para termos um CD para oferecer aos nossos clientes". E eu, "espera aí, eu vou gravar o meu primeiro disco daqui a duas semanas?" Foi basicamente assim. O Pir fez um arranjo, uma introdução para uma das músicas e viemos cá gravar minha primeira experiência de gravação à séria. O disco acabou por passar em algumas rádios, mas nenhuma assim muito mainstream e não foi um disco que depois eu andasse a vender, porque aquilo era um disco para oferecer. Portanto, não posso dizer propriamente que seja o meu primeiro disco. Mas, por outro lado, também tenho muito carinho por esse trabalho. Quem sabe se daqui a uns tempos volto a editá-lo, versão deluxe, remastered ou qualquer coisa e aí sim ponho no YouTube e no Spotify e etc. Mas por enquanto, tenho de ver se ainda tenho lá cópias em casa. 

Voltarias ao jazz? 
Eu nunca deixei o jazz. É uma música que tem muitas décadas que no seu espírito tem a ver com improvisação e liberdade e criatividade. Foi-se transformando ao longo dos anos. É um estilo de música que acaba por infelizmente muitas vezes ser de nicho. Só uma elite ou um grupo pequeno de pessoas é que a alimenta, mas há cada vez mais pessoas a estudarem jazz. Antigamente, o jazz era um estilo de música que se aprendia na rua e nos clubes, não era nas academias. E nas últimas duas décadas tem-se assistido ao crescimento das academias. Apareceram muitos bons músicos [em Portugal] porque o jazz é uma formação incrível, que nos dá muita exigência no domínio do instrumento, muita competência. E depois, no meu caso, deu-me muita liberdade porque é por ter estudado jazz que eu acho que componho hoje em dia porque improvisar, como se improvisa nos solos de jazz, é como escrever música em tempo real. É preciso estudar a harmonia, mesmo que seja de uma forma intuitiva, é preciso conhecer a harmonia e isso deu-me alguma flexibilidade e deu-me ferramentas para depois poder compor. Só isso valeu muito, muito a pena. E até porque depois prepara-te para outros géneros, não te agarra ao jazz. 

Neste mês em que celebramos 50 anos de democracia em Portugal, eu gostaria de saber que músicas ativistas te marcaram mais?
Assim que fizeste esta pergunta, a primeira referência que fui buscar não era portuguesa, o que é irónico. Foi uma canção da Joni Mitchell, The Fiddle and the Drum [de 1969]. Essa canção, eu lembro-me de um dos meus concertos ainda na época do jazz, em que eu fazia mais jazz, harmonizei, porque é uma canção cantada à capela que não tem harmonia. E eu inventei uma harmonia que não estava propriamente implícita na melodia. Marcou-me ver um vídeo no YouTube da Joni Mitchell, em que ela está num num programa de televisão americano, não me recordo qual, ainda ela era muito novinha. E ela diz: "este é o meu contributo como canadiana a viver aqui nos Estados Unidos". E a canção, primeiro, fala para uma pessoa, "my dear Johnny, my dear friend", e no final volta a cantar a letra toda e substitui, "dear America, my friend". E percebe-se que ela estava a falar para o país.E a frase é: "And so once again, you are fighting us all/And when we ask you why/You just raise your sticks and cry/and we fall". É uma coisa lindíssima, porque no fundo, é uma forma muito poética de falar sobre a guerra, mas ela não abriu a falar sobre a guerra. Foi como se tivesse a falar sobre uma pessoa, uma pessoa conflituosa. E depois substitui, dá aquele twist que eu acho maravilhoso nas canções. E então, essa canção tem o ponto de vista do imigrante, porque eu acho que não há país livre que não respeite os imigrantes e que não saiba aprender também com eles alguma coisa. E também da fuga da guerra. E por isso, para mim, é uma canção sobre liberdade e foi a primeira que me veio à cabeça. 

Joana Espadinha

Joana Espadinha apresenta ao vivo as canções novas de "Vergonha na Cara" nos concertos no B. Leza, em Lisboa, a 9 de maio; no Salão Brazil, a 10 de maio, em Coimbra; e no Novo Ático, no Porto, a 26 de maio. A cantora vai ser acompanhada por mais cinco músicos: António Vasconcelos Dias (nas guitarras), Margarida Campelo (nas teclas e coros), Pir (na guitarra eléctrica), Francisco Brito (no baixo) e Nuno Sarafa (na bateria).