Ainda não tem a nossa APP? Pode fazer o download aqui.

Madonna na Altice Arena: longa vida para a rainha

A "Celebration Tour" chegou a Portugal. Esta terça-feira, é o segundo concerto de Madonna na Altice Arena, em Lisboa.

Madonna na Altice Arena: longa vida para a rainha
Madonna na 65ª edição dos Grammys, 2023, Los Angeles Chris Pizzello/Associated Press

Madonna voltou a um dos lugares onde pertence: Lisboa. E é a própria quem o diz. A Rainha da Pop voltou à "cidade de acolhimento" e trouxe consigo o seu habitat natural: quatro dos seis filhos, (Esther, Stella, Mercy James e David Banda), uma notável entourage de exímios bailarinos e, claro, a marca real que cravou, a pulso e com garra de estrela, na história da pop.  

Madonna é a monarca da reinvenção, a provocadora e a militante de um mundo livre de preconceitos. É a mulher que fez barulho, cantou, chocou, agitou, encantou e vingou. O legado é, por isso, inspirador e histórico. Está na altura de celebrá-lo. Celebrar as canções e todos os imaginários e manifestos que criou desde o início dos anos oitenta quando se atirou para as malhas e promessas de futuro de Nova Iorque. Celebrar o espírito inquieto e criativo da mulher que agora, aos 65 anos, montou pela primeira vez uma digressão que narra, com orgulho, a sua aguerrida jornada. A intenção de "Celebration Tour" é clara: contar a história da mulher que segura na mão o cetro da pop.  

A celebração foi em seis atos e um encore. A história de Madonna é contada com canções, dança, com os figurinos icónicos que ditaram tendências de moda, com vídeos, velhas fotografias e com homenagens (a amigos que perdeu, a amores que teve, a Prince ou a Michael Jackson, à família e às suas inspirações). No espetáculo coube tudo o que fazia sentido para reavivar no palco a jornada da constelação de Michigan

Às dez da noite, já com hora e meia de atraso, a Altice Arena estava cheia e irrequieta para receber a aguardada rainha que chegou solene, dentro de um volumoso vestido preto e coroada com uma auréola prateada. Em cima de uma plataforma giratória de dois andares e um círculo de luzes em cima de si, Madonna abriu o espetáculo com 'Nothing Really Matters', tema que foi buscar ao disco 'Ray of Light' de 1998. Telemóveis em punho para captar a entrada de Madonna, alguns braços no ar e alegria pelo reencontro. 

Um ambicioso pulo no tempo transportou-nos depois para 1982 e para 'Everybody' - a canção que serviu de single de avanço ao primeiro álbum da norte-americana. É o tema que Mark Kamins, um DJ de um clube de Nova Iorque, mostrou à editora Sire Records e que abriu caminho para tudo o que veio a seguir. 

O ecrã gigante, que servia de fundo ao palco, ia mostrando imagens de Nova Iorque, enquanto os bailarinos, vestidos a rigor para replicar o estilo de Madonna no início de carreira, iam dançando à volta da cantora, que, por esta altura, já estava dentro de outra vestimenta.
 
O maillot, o corpete tradicional da queen e a saia curta arejaram os movimentos da artista norte-americana que, ao lado do grupo de bailarinos, foi andando e dançando por uma das extremidades do palco. 'Into the Groove' - que a Billboard elegeu como single de dança da década de oitenta - foi a que veio a seguir no alinhamento que, ao longo de quase duas horas, foi pontuado por uma série inesgotável diamantes radiofónicos. 

Bailarinos fora do palco para ouvirmos 'Burning Up' - outra relíquia do disco de estreia. Madonna cantou-o sozinha, com a guitarra nos braços, a dar uns ares de rock, antes de substituir o instrumento por uma cadeira para dar voz e corpo a 'Open Your Heart', recriando o videoclipe que a metia a dançar no submundo boémio dos peep shows. Ah, calma, isto não sem antes dar um gole convicto na bebida que tinha na mão. 'Holiday' - outra do álbum com que se estreou - transformou a arena numa ampla pista de dança. Madonna estava no centro do palco rodeada pelos bailarinos.

Da euforia à homenagem. Elevada numa plataforma quase até ao teto da arena, Madonna cantou 'Live to Tell', suspensa no ar, para lembrar os muitos que morreram com o flagelo da SIDA, sobretudo nos anos oitenta e noventa, incluindo alguns amigos, como é o caso de Martin Burgoyne (um dos seus melhores amigos) ou de outro astro, Freddie Mercury. Estes e tantos outros foram sendo recordados no ecrã gigante. "Em memória das luzes brilhantes que perdemos com a SIDA", lia-se no final da canção que foi selada com o aplauso dos milhares que estavam na arena e com um balão vermelho de tributo a subir aos céus.

Transição perfeita (e arrepiante) para outra atmosfera e para o abalo que 'Like a Prayer' provocou nas suscetibilidades católicas no final dos anos oitenta. A intenção de provocar permanece. A solenidade de alguma iconografia eclesiástica, que passeava pelo palco, ia sendo humanizada, mais atrás, pelo grupo de bailarinos que simulavam Cristo na cruz. O inicial som clássico de sinos da igreja foi substituído por um excerto do menos sagrado 'Unholy', de Sam Smith. O final foi num fundo púrpura com um bailarino, agarrado à guitarra, a lembrar a genialidade e os movimentos de Prince. 


Canções como 'Living For Love' e 'Fever' foram condensadas como num interlúdio que nos levou até 'Erotica' e à fase (novamente controversa) da edição do livro "Sex", editado em 1992. Ouviu-se, às tantas, a introdução de 'Papa Don't Preach' que, entretanto, foi colada a 'Justify My Love'. Vimos numa cama com Madonna um avatar dela própria e, mais à frente, um emaranhado humano, magnificamente coreografado, no centro do palco.

Seguiu-se 'Hung Up' - recriada com outra coreografia humanamente libertadora - e 'Bad Girl', que Madonna cantou junto à filha Mercy James que brilhou ao piano. Madonna (claramente uma mãe babada) brindou à filha com um copo de vinho que talvez até seja da casa.
 
'Vogue' serviu de pretexto para transformar a Altice Arena num gigante ballroom, que nos anos oitenta funcionava como um espaço de liberdade de expressão através do voguing - um manifesto da subcultura nova-iorquina que agregava as comunidades marginalizadas pelo género, sexualidade ou etnia. A dança alimentava-se artisticamente da estética que estava em voga nos escaparates da moda, sobretudo nas capas da famosa revista "Vogue", daí o nome. O ballroom que Madonna montou em Lisboa teve convidadas de alto gabarito: Stella e Estere, as filhas gémeas da norte-americana, brilharam ao lado da mãe. Stella como a DJ e Estere a dançar.   

'Human Nature', que chegou logo a seguir, lembrou-nos do papel que Madonna teve na defesa da manifestação do que é intrinsecamente humano mesmo que o assunto seja "apenas" sexo. O manifesto contra a censura, orquestrada pelos pudores da sociedade, antecederam mais romântica 'Crazy For You' que terminou com o palco em chamas, incendiado pela dona do espetáculo. A intensidade de 'The Beast Within' (que ouvimos sem Madonna no palco) foi entregue e sustentada pelo corpo de bailarinos. Seguiram-se 'Die Another Day' e 'Don't Tell Me'.

Madonna cantou 'Mother and Father' com o filho David Banda na guitarra e ao lado da imagem da mãe que morreu quando a cantora tinha apenas cinco anos. Era tempo de dedicar uma canção a todas as mães. A mãe biológica do filho adotivo de Madonna também foi lembrada no ecrã. 

"Estão comigo, Lisboa? Sempre que chego a uma cidade digo que estou feliz (e é sincero) mas hoje estou mesmo muito feliz. Lisboa faz parte da minha história e este espetáculo é sobre a minha vida", disse ao público. Foi nesta altura que contou a história da vinda para Lisboa, em nome do desejo do filho de querer jogar futebol. Soubemos também que, por estes dias, David Banda já não quer a bola, quer ser cantor.
 
Nas palavras que trocou com o público, Madonna comparou a vinda para Lisboa com o tempo em que se mudou para Nova Iorque. No fundo, ambas saídas da zona de conforto. Destemida como é, atirou-se para um novo lugar. Tal como encontrou em Nova Iorque, também aqui disse ter encontrado "a sua tribo" - artistas, criativos e novos amigos. Sentiu-se, como contou, "em casa". Madonna confidenciou que guarda Lisboa com saudade e talvez tenha sido por isso que a cidade mereceu um mimo exclusivo. Com a guitarra nos braços, cantou 'Sodade', de Cesária Évora, acompanhada pelas vozes da plateia que tinha aos pés.

 
Na paz de Lisboa, lembrou a loucura do mundo que, apesar de ser constante, fica ainda mais evidente com as redes sociais. "A única forma de salvarmos o mundo, de sobrevivermos e de nos salvarmos uns aos outros é com amor, paz e unidade. Salvamos o mudo juntos quando o iluminamos com o que está ao nosso alcance", disse. 'I Will Survive', que Gloria Gaynor cantou em 1978, veio depois com a constelação de luzes formada pelos telemóveis do público a envolver a cantora.

'La Isla Bonita' não faltou, claro. E 'Don't Cry for Me Argentina' honrou as inspirações e as referências de coragem da artista. No ecrã vimos as fotografias de históricos como Martin Luther King Jr., Che Guevara, David Bowie, Sinéad O'Connor, Malcolm X, James Baldwin ou Nina Simone, a senhora que segurou uma das maiores verdades na voz quando dizia "liberdade é não ter medo". Esta noite, a mensagem "no fear" (sem medo) foi, claro, amplamente relembrada em vários pontos do espetáculo ou não fosse essa a premissa da jornada que hoje foi recriada no palco. Madonna ousa ser livre e tamanha ousadia liberta-nos também.   

'Bedtime Story' e 'Ray of Light', com a arrojada norte-americana outra vez suspensa no ar, antecederam a balada 'Rain'. 'Like a Virgin' serviu para homenagear o astro real que ladeia Madonna no trono: Michael Jackson. As silhuetas da realeza da pop ocuparam o ecrã. Rei e Rainha juntaram-se numa dança de sombras ao som (intercalado) de 'Like a Virgin' e 'Billie Jean'.


'Bitch, I'm Madonna' orquestrou o desfile de moda com as roupas que marcaram a carreira da rainha. 'Celebration' ficou para o fim com um novo agradecimento a Lisboa, que certamente teve retorno de quem ali estava. "A coisa mais controversa que alguma vez fiz foi manter-me aqui", ouvimos a meio do espetáculo. Agradecemos por ter ficado.