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Adriana Calcanhotto: "a espécie humana não está a querer salvar-se"

Retoma pós-pandémica com o álbum "Errante", desde hoje à mercê do público.

Adriana Calcanhotto: "a espécie humana não está a querer salvar-se"
Adrix Leo Aversa (cortesia promoção da artista)

Adriana Calcanhotto precisou de tirar do armário uma imensa reserva de canções inéditas com alguns anos para finalmente descolar para a pós-pandemia. "Errante", álbum virado para a primeira pessoa, é esse disco que resgata o que estava pendurado.

Na procura de reavivar a Adriana compositora, a artista volta à estrada e, claro, a Portugal, onde vai cumprir seis datas ao vivo: a 24 de maio em Coimbra (Convento S. Francisco), a 26 de maio em Lisboa (no Centro Cultural de Belém), a 27 de maio em Estarreja (no Cine-Teatro de Estarreja), a 29 de maio em Ponta Delgada (no Teatro Micaelense), a 31 de maio no Porto, na Casa da Música e, várias semanas depois, a 23 de junho em Faro (no Teatro das Figuras). Na nova vestimenta instrumental, consta pela primeira um trio de sopros.

Fomos conversar por zoom com Adriana Calcanhotto que se apresenta biograficamente no tema 'Prova dos Nove' (que abre o novo álbum) como uma mulher com "parte do sangue judeu", "um corpo italiano", "o nascimento no Brasil", com "uma luz lusitana" e a "mátria africana". 

O "Errante" parece ser um disco mais amargurado, mais magoado. Também o vê desta maneira?
Acima de tudo, é um álbum de compositora. Pela primeira vez na minha vida, eu tinha 18 canções inéditas e guardadas. Eu tinha feito o álbum "Margem", de ambiência marítima. Depois, com a pandemia fiz um álbum relativo a este período: sobre a pandemia, durante a pandemia, crónicas da pandemia. Fiquei com essas canções, algumas mais antigas, da safra de 2016, que não tinham sido lançadas. Resolvi gravá-las, tocando num assunto que a pandemia me fez muito pensar, que é a questão da errância. Olhei melhor para a minha alma, que vai de encontro à minha origem sefardita, a errância dos meus antepassados. O disco trata da minha errância por escolha, andando pelo mundo cantando canções. O disco lida com essas questões, sem ser feliz ou amargurado. É um disco que constata questões da vida, mesmo escritas antes da pandemia, que puseram o mundo a pensar. Não é agradável, mas forçou-nos a pensar em coisas que não pensaríamos se não fosse a pandemia. Acho que o saldo positivo da pandemia é esse. Tinhamos as coisas agendadas e achámos que tínhamos o controlo sobre elas. Sabíamos que ia acontecer porque estava agendado. Só que não. O facto de nos termos espantado e de termos estado tão mal preparados, de estarmos tão dependentes da China. Fiquei espantada com o nosso espanto. Eu vinha de um disco, "Margem", que toca em vários assuntos, com referências à ambiência marítima, de forma metafórica e física. Eu estava a fazer uma queixa de que os oceanos estão entupidos de plástico de forma terrível. As nossas correntes sanguíneas estão entupidas de microplásticos. Com a pandemia, isso piorou, fui vendo aquele monte de coisas descartáveis e de máscaras. Estas canções do "Errante" são de antes de tudo isso. Eu erro pelo mundo para cantar músicas. Estou-me cruzando com pessoas que vão errando pelo mundo, com questões de gente sem nacionalidade, de gente que está largando o seu país em busca de uma vida melhor. Há pessoas que imigraram para cá [Brasil], tentando uma vida melhor, que foram assassinadas. É dessas errâncias todas de que o disco trata. Não é um disco totalmente feliz ou infeliz. É como a vida.

 

Podemos falar de um disco marcado pela pandemia?
Apesar das canções não terem a ver com a pandemia, foram gravadas em 2021, durante a pandemia, quando já dava para ir a para estúdio, com todos vacinados e num ambiente controlado. Já dava para sairmos de casa e gravarmos juntos. O disco anterior, "Só", gravei-o em casa. Cada colaborador gravou em sua casa, pelo laptop. O "Errante" parece que abriu uma toupeira. Todos nós, músicos, que estávamos confinados, pudemos encontrarmo-nos presencialmente, improvisar, fazer tudo o que é diferente na forma do que se gravássemos se estivéssemos a gravar em nossa casa. Quando lancei o "Só", as pessoas perguntavam-me: "ah, como é gravar cada um em sua casa?". Não era novidade, já se fazia isso, só que na pandemia, eu não tinha outro jeito de fazer. Assim que foi possível tocar presencialmente, eu fui para estúdio com esse material inédito. Portanto, sim, o álbum é relacionado com a pandemia.        

O "Errante" soa-me a um disco muito solitário.
A minha estrada é mesmo assim. Estar todos os dias numa cidade diferente, no meio de milhares de pessoas. No entanto, você sai do concerto e vai para o hotel sozinha. E pega outro meio de transporte e vai para outra cidade de milhares de pessoas. O disco anterior é relativo à pandemia e o anterior ao mar e aos oceanos. Portanto, as música que fiz relativamente ao luto não foram publicadas. Só estão sendo publicadas no "Errante". Ficaram guardadas, não foram para nenhum intérprete. Tendo 18 canções inéditas, o que é muito para mim, senti que se não gravasse, não iria conseguir compor coisas novas, o que de facto ainda não aconteceu. As únicas canções que compus são de antes da pandemia. A canção sobre o menino Miguel [de 2020] foi provavelmente a última música que compus. O "Errante" vai cumprir o seu destino de estar na estrada. E aí é que vou conseguir compor de novo, porque a estrada é um bom lugar para compor.   

 

A Adriana sente neste disco mais tendência para falar da sua vida do que em ficcionar personagens?
Depende muito, cada canção é de um jeito. Às vezes, a canção começa num plano pessoal e ganha contornos fictícios. Às vezes, é uma coisa inventada que vai parar à minha vida. Às vezes, é algo que copio da vida de alguém. Às vezes, está relacionado com as notícias. Às vezes, tem a ver com um poema. É difícil determinar como é que é. Digo isso aos meus alunos de composição: cada canção é uma inauguração própria, vai pedir o que vai pedir. A maioria das minhas canções foram feitas na guitarra, é o máximo que de te posso dar de uma média, porque cada canção pede uma coisa. Ou leva dias, ou anos, ou é feita em meia-hora. A grande graça é essa. 

Se lhe perguntarem quem é a Adriana Calcanhotto, a sua reposta está na música 'Prova dos Nove', certo? É uma música auto-biográfica.
Sim, ela é [auto-biográfica]. É como uma carta de intenções. Não esgota mas recorta bem. Trata do que é e não é a escolha. Eu não escolho onde nasci, não escolho o meu nome, não escolho a minha raça, não escolho o meu género. Você não pede, você nasce. Mas o que escolhe fala muito de você. O disco fala muito entre o que escolho e o que não escolho, onde é estou e quem eu sou. 

No meio dessa massa de músicas em português, como é que surgiu no meio do disco a música em inglês 'Lovely'?
Só sei pensar em português. Há milhares de coisas intraduzíveis de uma língua para a outra. Por exemplo, o "call me". O livro "Moby Dick" começa com esta expressão: "call me". "Call me, Ishmael", que é o único sobrevivente que vai contar a história toda. Ele não diz: "eu sou Ishmael". Ele diz: "call me, Ishmael". Nas traduções para o português, que são muitas, você encontra: "chamem-me, Ishmael"; "chamai-me, Ishmael". Não tem "call me". O livro começa nesse enigma. Eu adoro isso, não como dizê-lo em português. Só em inglês pode ser dito. Se eu não fosse tão ligada à língua portuguesa, eu não precisaria de cantar essa música em inglês.     

 

É verdade que a ideia para a canção 'Horário de Verão' surgiu em Portugal?
Sim, estávamos em turné em Portugal, no show do "Margem". A minha banda era o trio [instrumental] do Tono, sem a Ana Lomelino, que canta. Eles tinham um show do trio deles na Casa do Conto, no Porto, num dia de folga da minha digressão. Estávamos hospedados na Casa do Conto e eles convidaram-me para participar no show deles. Fiz duas ou três músicas com eles e assisti ao resto do show, vendo a química deles. Eles são tão amigos e irmãos. Amam-se tanto. Fiquei assistindo àquilo. Estive a ver a minha banda de fora. Foi interessante vê-los do lado de fora. Começaram a tocar músicas deles e foi-me chegando uma canção que eu não sabia direito o que era porque estava no meio do show. Aquilo foi vindo e foi-se concretizando nas cidades seguintes. Não me lembro do nome das cidades. Cada tempo que havia no hotel ou no camarim [era aproveitado]. Na passagem do som [sound check], fui armando a canção que era o 'Horário de Verão'. É uma coisa em que sempre penso: quando chega o réiveillon, tenho a sensação de comemorarmos a chegada do ano novo uma hora antes. A questão dos horários é uma convenção que inventámos. Há uma hora tal em Portugal e tantas horas noutro país e tantas horas no Brasil. É tudo invenção nossa. Inventamos um horário de verão que é uma ilusão total. A canção toca nesse absurdo.   

A Adriana ainda passa temporadas em Portugal, como em Coimbra?
É provável que vá para Coimbra no ano que vem. Tnha que finalizar o álbum e preparar o concerto, e tinha preparar o tributo à Gal Costa para o qual fui convidada. Como estou muito dedicada a isso, não caberia a minha ida para Coimbra. Mas é uma coisa que gostaria de voltar a fazer, porque fiquei muito apaixonada por Coimbra. Amo Portugal, toda a gente sabe disso. É muito rico para mim estar aí com vocês, descobrir cidades que não conheço que estão agendadas para a digressão.

O que é podemos esperar dos concertos em Portugal?
Pela primeira vez, vou ter sopros na banda, que é uma coisa que sempre quis ter. São exatamente os músicos de sopros que tocaram no disco [Jorge Continentino no saxofone, flauta e teclados, Diogo Gomes no trompete e Marlon Sette no trombone]. Não vou ter o meu baixista e guitarrista por excelentes motivos. O guitarrista David Moraes vai estar com a Marisa Monte e o baixista Alberto Continentino está na banda do Caetano Veloso. Então, eu vou ter o Pedro Sá na guitarra, o Guto Wirtti no baixo e o Domenico Lancellotti na bateria - que gravou o disco e está connosco. O concerto é mais festivo do que o disco. Os arranjos dos metais entram em temas onde não estavam. Essa sonoridade do álbum vai ser levada para as outras canções que são obrigatórias. Vamos vestir essas canções com a sonoridade do "Errante". Na minha opinião, está a ficar muito bonito e prazeroso, porque o nosso espírito do disco é muito jazzístico, no sentido de tocar com liberdade, sem grandes dogmas. Estamos tocando com enorme liberdade. Já tocamos há bastante tempo essas músicas. Eles são também compositores. Eles olham para as canções de um jeito, de quem olha por dentro, de quem faz, de quem constrói, de quem arquiteta. Acho que isso nos dá uma cumplicidade meio-livre.   

 

A Adriana está mais otimista em relação ao Brasil?
Com certeza. Não será fácil. Não acho que certas ideias da extrema-direita desapareçam. Precisamos de ficar alerta e vigilantes. O que aconteceu é uma grande lição para os democratas e os progressistas. A democracia não é uma coisa que se possa dizer: "está conquistada". Não podemos perder a atenção nunca. 

Ainda é possível salvarmos a Amazónia?
Gosto de ser otimista, a responsabilidade é nossa, mas a ação e os efeitos já estão nas mãos das gerações mais novas. Eles é que vão agir porque o mundo será deles. Não tenho muito mais esperança no mundo adulto, desde o [Adriana] Partimpim [de 2004]. O mundo adulto não é tudo aquilo que eu imaginava em criança. Eu acho as novíssimas gerações muito mais lúcidas e engajadas na questão ambiental, muito mais lúcidas que a minha geração.

E temos o exemplo da Greta Thunberg.
A Greta e as pessoas mais novas que ela, influenciadas por ela. Quanto mais jovens, mais entendimento. É difícil dizer que nos irão salvar. Não tenho a certeza que a nossa espécie se vai salvar, porque se comporta como não se quisesse salvar. Se destrói o próprio habitat, não me parece que se queira salvar. Mas isso não é que se diga com crianças na sala. Apesar dessas dúvidas, é importante pensarmos que vamos conseguir.