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A carta aberta de Roger Waters na Altice Arena

Lisboa abriu a fatia europeia da digressão "This Is Not A Drill". A sala lisboeta esteve apinhada de gente que quis escutar Waters.

A carta aberta de Roger Waters na Altice Arena
Rúben Viegas

"Uma inovadora e cinematográfica extravagância de rock & roll". É assim que começa a descrição da digressão de Roger Waters que chegou agora à Europa. É a  digressão que o músico, recorrendo ao gracejo que lhe é orgânico, reclama como a "primeira tour de despedida". Ontem foi o primeiro concerto dos dois que estão marcados para solo português. Hoje, 18 de março, o britânico volta a pisar a Altice Arena para a segunda ronda. Volta com um espetáculo poderoso que é tão conceptual e interventivo como o homem que o criou. 

"É uma indireta à distopia corporativa na qual todos lutamos para sobreviver. É um apelo ao amor, à proteção e à partilha do nosso precioso e tão precário planeta Terra", contava a nota que apresentou o conceito do espetáculo à imprensa. Vimo-lo finalmente, em carne viva, aos pés do Tejo. Aos pés de Roger Waters, vimos uma manifestação de afeto e respeito.

"This Is Not a Drill" é uma carta aberta à reflexão sobre uma série de assuntos que, embora maioritariamente politizados, invariavelmente se cruzam com a condição humana. Ou condições humanas? É um espetáculo leal ao ancião interventivo Waters que, qual nómada do manifesto, passeia as canções pelo mundo, à espera de, quem sabe, mudá-lo, segundo as convicções que carrega. Escutámos mais de 20, desde as canções que saltaram da era bordada a ouro dos Pink Floyd às que o lobo solitário inglês, de 79 anos, criou no percurso a solo. As canções são a matéria-prima deste homem que insiste em reforçar as suas certezas, ainda que as menos consensuais o tenham transformado num alvo, à mão de semear, da chamada "cultura de cancelamento".

Nos últimos tempos, que por sinal têm sido globalmente atribulados, Roger Waters tem estado num remoinho de polémicas. Seja devido à posição menos ocidental no assunto Rússia/Ucrânia seja na oposição insistente ao Estado de Israel no conflito com a Palestina. As posições que defende, de forma acérrima e apaixonada, já lhe custaram cancelamentos de concertos na Polónia e na Alemanha, sob as acusações de estar demasiado próximo de Putin ou de ser "antissemita". Roger Waters nega, refuta e insiste que as lutas que proclama vêm de um lugar de amor, não de ódio. 

O espetáculo é por isso uma jornada extra-sensorial, sónica, visual, política e em alguns momentos até afetuosa pelas convicções acirradas de um homem que já se acostumou a ser polémico. O histórico britânico transformou a sala lisboeta numa arena de contestação, mas, sobretudo, de súplica pela proteção dos direitos humanos. E também num bar. Num bar imaginário onde a partilha humana e a troca de opiniões (mesmo que diferentes) são trocadas num espaço seguro, de construção. "Nesta digressão sou eu a fazer a coisa certa", já tinha dito Waters numa entrevista recente sobre "This Is Not a Drill", e a ideia de 'The Bar', como explicaremos mais à frente, não parece ter nada de errado.

A ideia parte de um homem que não menciona as certezas com subtileza. Agiganta-as, com imagens na grande tela e sons ilustrativos que vão sendo disparados das colunas. É certo que as canções que dão corpo e alma ao espetáculo são gigantes por si só e Waters acomoda-as na narrativa, com um propósito. O seu. 

Antes do espetáculo começar, porém, dois "anúncios de cariz público", como disse Waters: um para as pessoas desligarem os telemóveis e o outro para reverem as razões que as levaram a estar ali. "Se são daqueles que adoram Pink Floyd mas não suportam as visões políticas do Roger, podem muito bem ir para a zona do bar", ouviu-se pela voz irónica e teatralizada do próprio. Ninguém arredou pé. 

O som de um trovão deu o terceiro aviso: o espetáculo ia começar. Imagens de edifícios altos, em ruínas, a lembrar o cada vez menos irrealista apocalipse, preencheram as telas, que estavam dispostas em forma de cruz, no centro da arena, criando o efeito de proximidade 360º.   

Os músicos ficaram distribuídos pelos quatro compartimentos que estavam divididos pelos muros (ecrãs) enormes que iam transmitindo a mensagem visual dos vários manifestos de Waters.

O tom dramático adensou-se, aos poucos, para a chegada do primeiro tema: o desesperançoso e belo 'Comfortably Numb', do histórico "The Wall", de 1979, que Waters reconstruiu durante o confinamento com o intuito de abrir os espetáculos da digressão. Roger Waters segurou a canção sozinho até à entrada dos coros que fizeram a vez de David Gilmour, com quem Waters partilhava a faixa no tempo dos Pink Floyd. Figuras corpulentas, estáticas, e acima de tudo solitárias, iam sendo projetadas no video hall ao mesmo tempo que o fantasmagórico 'Comfortably Numb' - uma das muitas canções elementares do coletivo britânico - ia completando um novo ciclo de vida, mais frondoso e vagaroso. 

A sequência 'Another Brick In The Wall', também da obra histórica "The Wall", chegou cheia de força. O manifesto contra o controlo do pensamento e em defesa da autorreflexão e da maturação do sentido crítico soltou os movimentos do esguio Waters, que, convicto e energético, ia passeando pelos espaços vazios que sobravam entre os músicos. Erguia os braços, simulava solos de guitarra e saudava o público. Nos ecrãs gigantes - agora levantados - iam sendo projetadas questões. "Quem são os bons, quem são os maus e quem é que decide isso. Os governos?". 

A dada altura, já vemos Waters, vestido de preto, a encorpar a narrativa, com um entusiasmo jovial invejável. Os nossos olhos, contudo, fogem para as frases que estão a ser projetadas no vídeo: "notícias falsas" ou "quem controla a narrativa, controla o mundo" são algumas. 

'The Powers That Be '- do álbum a solo "Radio K.A.O.S." de 1987 - veio com mais um naipe de mensagens que o músico insistiu em passar, com urgência, nos oito ecrãs gigantes que estavam suspensos em cima do palco. A chamada de atenção era agora para comunidades mais frágeis, para os direitos por conquistar das mulheres no Irão ou para a questão do enclave palestiniano que Waters recusa largar. 
 
Mas há mais. A balada interventiva 'The Bravery of Being Out of Range' foca nos ecrãs a face do antigo presidente norte-americano Ronald Reagan, mas com um rótulo expressivo a tapá-la. Lemos, em caixa alta, a frase "criminoso de guerra". Waters canta mais uma criação sua nas teclas, com o toque precioso das duas vozes dos coros e acompanhado pelo choro inconformado das guitarras. Outras caras, de outros antigos inquilinos da Casa Branca, vão surgindo sequencialmente nas telas. Vemos as faces de Bill Clinton, George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden. O carimbo de "criminoso de guerra" mantém-se, intacto, em cima de cada um deles. 

A sala, quieta, escuta. O inglês aproveita para conversar com o público e mostrar uma canção nova, que diz ter composto durante o confinamento. Chama-se 'The Bar' - o tal bar alegórico de partilha afável entre opiniões divergentes, que Waters apresenta, orgulhoso, com uma garrafa de mezcal ao lado. "Boa noite", diz aos milhares que ali estavam. "Amanhã, vou aprender a dizer boa noite em português, vou escrever num papel", gracejou.

"É o primeiro concerto da fatia europeia. Eu sabia que ia ser ótimo. Adoro Lisboa, adoro a vossa cidade, já toquei cá algumas vezes", disse, antes de explicar o conceito do bar imaginário e convidar toda a gente para um copo. "O bar é um lugar que existe em nós, no nosso coração, na nossa alma. É um espaço seguro para conversar com amigos, com estranhos. É um lugar onde podemos conversar. Conversar é o mais importante que podemos fazer agora", explicou. A proposta informal e íntima embalou o público. Roger Waters, ao piano, agregou-nos num espaço humanamente confortável mas estranhamente idílico.

Salto no tempo e fomos do recente 'The Bar' para contemplar mais uma série de diamantes esculpidos pela banda histórica inglesa. O sintetizador dramático da hipnótica e expansiva 'Have a Cigar' agitou a sala e foi preparando o público para mais imersões pink floydianas. A emotiva e mais popular 'Wish You Were Here' lembrou Syd Barrett e a história dos dois cúmplices que estiveram na génese dos Pink Floyd. Syd e Roger. A história dramática de Barrett, que não conseguiu emergir das areias movediças do abuso de LSD, foi avivada de novo. Foi também nesta altura que Waters abriu o peito à nossa frente. "E é tão fácil perdermo-nos", pudemos ler no ecrã, enquanto o público, que cantou 'Wish You Were Here' de uma ponta à outra, saudava o momento que teve tanto de belo como de frágil. 

Vestida de vermelho, a Altice Arena ouviu a seguir a brilhante 'Shine On You Crazy Diamond' e 'Sheep', um exercício mais psicadélico que voltou a meter o foco na importância da individualidade do pensamento contra a espessa artimanha daquilo a que Waters chama de propaganda. Foi o fim, apoteótico, do primeiro ato que fechou com uma ovelha insuflável a vaguear pelo ar. 

A segunda parte começou com mais duas passagens por "The Wall". Primeiro, ouvimos a intensa 'In The Flesh' - agora com Waters a personificar um malévolo totalitarista (de gabardina e óculos de sol) a andar pelo palco, com uma genica militarizada e ladeado por dois soldados. A faixa que abre o 11º álbum dos Pink Floyd antecedeu a cavalgada caótica de 'Run Like Hell', que chegou para ferver a arena lisboeta e levantar os braços de quem estava na plateia. 

'Déjà Vu' e respetiva reprise resgatou a história de dois repórteres da Reuters que, em 2007, foram abatidos pelo exército norte-americano em Bagdade, no Iraque. Waters fez questão de reforçar a denúncia e de aclamar os denunciantes, com o pedido de libertação do fundador da Wikileaks, Julian Assange, e uma referência à whistleblower Chelsea Manning, que foi alvo de uma brutal detenção em 2010. A frase "todos nós precisamos de direitos iguais" surgiu no ecrã, ao som do saxofone de Seamus Blake, entre referências ao drama dos refugiados, dos palestinianos, dos iemenitas, dos indígenas, das mulheres ou dos transsexuais.

'Money', cantada pelo guitarrista Jonathan Wilson, transportou toda a gente para o cinquentenário e fundamental "The Dark Side of the Moon" - um dos tesouros históricos do grupo britânico e também o disco que atirou os Pink Floyd para as boas graças das massas. A viagem seguiu nas asas do saxofone de 'Us and Them', a canção que revitalizou nas projeções de vídeo tudo o que está certo e errado no mundo. Canções como 'Any Colour You Like',  'Brain Damage' ou 'Eclipse' seguiram o seu curso natural e completaram a ode ao disco que faz 50 anos.

"Obrigado", disse Waters, agora em português, aos vários pontos cardeais da arena. "Estou muito agradecido por esta noite", continuou, com a mão ao peito enquanto ouvia o público a gritar o seu nome.

Quase no final, seguiu-se 'Two Suns in the Sunset' - do disco "The Final Cut" dos Pink Floyd. A reflexão era agora sobre a ameaça de uma guerra nuclear, que Waters reforça, preocupado, em tom de alerta. "Com esta história da Ucrânia e da Rússia, estamos a viver o momento mais perigoso de sempre", avisou, cantando a faixa com a guitarra acústica nos braços. "Vocês pertencem à NATO?", ainda perguntou, parecendo até um pouco surpreendido com a resposta afirmativa que voou da plateia para o palco.

O fim foi com o retorno ao 'The Bar'. Roger Waters dedicou-a ao irmão mais velho, recentemente falecido, à esposa que o acompanhou até Lisboa e a Bob Dylan, a quem diz ter roubado algumas palavras. O veterano cantou a reprise de 'The Bar' ao piano, com os músicos e os coros agregados à sua volta. "Gostaria que vocês estivessem aqui em cima connosco", confidenciou antes de erguer o copo para brindar ao público.

"Amo-vos a todos. Obrigado por esta noite", rematou, antes de sair, acompanhado pela banda, para os bastidores da arena. O tom da despedida foi de festa.