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Tudo o que se pode saber sobre Ennio Morricone no documentário

"Ennio, O Maestro" está em exibição nos cinemas desde esta quinta-feira.

Tudo o que se pode saber sobre Ennio Morricone no documentário
DR (cortesia Risi Film)

O documentário "Ennio, O Maestro" são mais de duas horas e meia de viagem pelo mundo complexo e belo do compositor italiano Ennio Morricone: toda a sua vida, muito do que fez, os seus imensos dilemas e a música grandiosa com que foi enriquecendo os numerosos filmes em que trabalhou. 

"Ennio, O Maestro" é realizado pelo compatriota Giuseppe Tornatore, um dos cineastas felizardos que pôde contar com o talento do compositor, na marcante música do filme de 1988, "Cinema Paraíso". Giuseppe Tornatore torna-se no conversador e amigo invisível atrás da câmara, que consegue retirar para o confessionário público alguns dos conflitos de alma de Ennio Morricone. Ficcionista notável, Giuseppe Tornatore também conhece os truques e a necessidade de dedicação que o trabalho de documentarista exige. Tudo pela superioridade da obra.

A música de Ennio Morricone é tão grande que sai da sala escura, como um doce e profundo prolongamento do filme que se acabou ver no cinema. Levamos connosco para a rua e para a normalidade o impacto daquela experiência bidimensional na grande tela, graças à música de Ennio Morricone que fica a ecoar na nossa cabeça. Fora de nós, a vida normal continua, mas dentro de nós há toda uma magia a ressoar, devido também à criação de Ennio Morricone.

Ennio Morricone ouvia na sua cabeça o que ainda não se via no filme. A musica não se tornava num outro filme, mas definitivamente engrandecia-o. O compositor percebia o filme que tinha em mãos, pensando-o de uma outra maneira com a música original que compunha. 

Ennio Morricone entra pelo cinema italiano adentro e nunca mais o larga. Ou melhor, nunca mais o largam. Giuseppe Patroni, Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci ou Dario Argento chamam-no para engrandecer os seus filmes. Depois vem o resto do mundo da sétima arte. Esse trajeto é relatado por “Ennio, O Maestro” com a minúcia que o tempo do documentário permite.

Morricone combateve-se uma vida inteira num duelo entre o dogma do que se devia fazer e o talento que o desviava da sua utopia ética. Procurava o lado exploratório da música contemporânea mas o jeito brutal para as melodias empurraram-no para encomendas de banda sonoras e para a escrita de canções. Idealizava o mais elaborado, mas quando só lhe pediam o mais simples, dava a sua magia muito pessoal. Estas disfuncionalidades da vida tornaram-no ainda maior do que ele se projetou ser.

Eis algumas sensações, curiosidades e informações que o documentário “Ennio, O Maestro” revela, relembra ou confirma:

1. É verosímil um jovem sonhar ser artista e os pais tentarem contrariar e imporem uma profissão mais normal. Mas com Ennio Morricone, foi o contrário. Ele queria ser médico, mas o pai determinou que ele seria músico à sua semelhança.

2. A sua vida é descrita minuciosamente, dos tempos de trompetista de salão para entreter tropas nazis e depois americanas em Itália, sob o olhar austero do pai, também ele trompetista. 

3. Quando era um jovem músico de salão, Morricone tocava para ser pago em comida. A conciliação do trabalho noturno de músico com o diurno de estudante de conservatório tornou-se complicadíssima. Ennio Morricone recorda, por exemplo, um exame que teve que fazer, com os lábios rebentados de tanto soprar no trompete na noite anterior. Para ele, ser trompestista de salão era uma humilhação.

4. O compositor e maestro Goffredo Petrassi foi o professor do conservatório de música mais marcante para Ennio Morricone. Muitos dos dilemas que amarguram algumas escolhas de Ennio Morricone eram provocados por alguns paradigmas éticos do professor Goffredo Petrassi, que teve vida longa para poder acompanhar o trajeto mundial do seu antigo aluno.

5. Ser compositor de música para filmes era motivo de vergonha que o levou a esconder o seu nome por trás de um nome fictício. Lentamente, percebeu através da sua arte que a grande música dos últimos 100 anos far-se-ia entrelaçada com o cinema.

6. Contraponto, esta é uma especialidade que Ennio Morricone que muitos dos artistas que falam no documentário lhe reconhecem, nomeadamente os músicos.

7. Ennio Morricone adormecia nas sessões de cinema dos filmes a trabalhar, mas sempre desperto, como se estivesse a sonhar com a música que iria compor. 

8. O compositor nascido em 1928 recusou-se a ser um mero intérprete ou arranjador, só trabalhava para o cinema na condição de compositor. 

9. O impacto da sua música cinematográfica é tal que se torna um profissional a tempo inteiro da sétima arte. De tal forma que começa a perder a conta aos trabalhos que fez para o cinema. Mas alguém deu-se ao trabalhar de contar. Só num ano, Morricone tinha composto bandas sonoras para 18 filmes.

10. Ennio Morricone também trabalhou muito na canção italiana e na música experimental. O compositor tinha uma particular predileção por esta última, pela sua inifinitude sonora e exploratória.

11. Ennio Morricone só teve coragem para passar a usar trompete nas suas bandas sonoras, depois da morte do seu pai, um trompetista muito exigente com o seu filho. Ennio tinha medo da reprovação do pai. 

12. O músico enfrentou o fardo do desdém intelectual à profissão de músico compositor para filmes e o lento reconhecimento da ala de compositores italiana, incluindo o seu mestre Goffredo Petrassi. A rendição aconteceu por fim no grandiloquente "Era Uma Vez na América", onde a música de Morricone era o motor do filme de Leone. A ação da narrativa tornava-se mais especial com a música de Morricone, como se fosse uma relação de dependência entre ambos. 

 

13. Ecos de Bach, Beethoven ou Stravinsky martelavam na sua cabeça como inspiração, tal como sons mais mundanos como um escadote a ser mexido por um assistente de sala de espetáculo ou um tambor a ser tocado num marcha de protesto.

14. O realizador Sergio Leone e Ennio Morricone foram colegas de escola e conheciam-se desde a infância. Morricone ligou-se como unha e carne aos filmes de Sergio Leone, na sua filmografia de western spaguetti.  Imaginou assobios (em "Por um Punhado de Dólares"), a recreação de uivos de coiotes (em "O Bom, O Mau e o Violão"), e fez da harmónica um dos meios de expressão do personagem central de "Aconteceu no Oeste", interpretado por Charles Bronson.

 

15. No filme derradeiro de Sergio Leone, Era Uma Vez na América (de 1984), as cenas no plateau eram filmadas ao som da sua música. Um dos seus temas originais, "Deborah's Theme", estava inutilizada, composta em vão para outro filme dos anos 70. 

16. Por um mal-entendido, falhou a composição para o filme de Stanley Kubrick, "Laranja Mecânica" (de 1971). Bastava Kubrick perguntar diretamente a Morricone se podia compor para o seu filme, que o compositor lhe teria dito que sim. Esta falha foi bastante lamentada por Morricone no documentário. Sergio Leone, assim que a ouviu, quis tê-la para este épico de gangsters, com Robert de Niro no papel principal.

17. Ennio Morricone começou por recusar a proposta de composição para o filme do britânico Roland Joffé, "A Missão", sobre a experiência de jesuitas na defesa dos povos índios na Amazónia. O compositor ficou tão impressionado com as filmagens, que achou nada teria a acrescentar e - como diz o seu filho Marco em entrevista à nossa rádio que pode consultar aqui - receou estragar o filme. Mas num momento de inspiração, repensou a sua recusa e ligou a Roland Joffé. Morricone já tinha a música para o filme, mitificada pelo uso de oboé.

 

18. O documentário “Ennio, o Maestro” é também sobre a angústia que envolve um compositor e sobre todas as suas dúvidas. Mas uma pessoa ajudava a tirá-las: a sua mulher, Maria Travia, que era a primeira ouvinte e conselheira de todas as músicas em composição. Apesar de não ser uma especialista em música, Morricone confiava na sua intuição.

19. “Ennio, o Maestro” retrata também a longa espera pelo Óscar de Melhor Banda Sonora Original, que tardava. À segunda nomeação perdida, pelo filme "A Missão", não aguentou a deceção e saiu da cerimónia a meio, nada convencido por ter perdido para uma banda sonora que entendia não ser assim tão original, a de "Round Midnight" pelo músico de jazz Herbie Hancock. A partir da terceira nomeação, deixou de acreditar que poderia ver o Óscar. Depois de mais duas nomeações sem Óscar, só recebeu a estatueta dourada enquanto prémio de carreira, das mãos de Clint Eastwood (a estrela da trilogia dos Dólares de Sergio Leone), em 2007. Nove anos mais tarde, em 2016 recebeu finalmente o Óscar de Melhor Banda Sonora Original, pelo filme de Quentin Tarantino, "Os Oito Odiados" ("The Hateful Eight"). A grande dedicatória especial foi para a sua mulher, Maria Travia.

20. O filme conta com depoimentos de gente que trabalhou com ele, como os caso da cantora portuguesa Dulce Pontes, e de cineastas como Roland Joffé, Bernardo Bertolucci ou Quentin Tarantino - e também admiradores seus como rockers como Bruce Springsteen, Mike Patton ou James Hetfield dos Metallica, o produtor musical Quincy Jones ou cineastas como Wong Kar-Wai. A grandeza de Morricone também se mede na diversidade de frases fortes sobre o músico que se ouvem em "Ennio, O Maestro".