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Surma: "a vulnerabilidade inspirou-me"

Começa esta noite a mini-digressão nacional de Surma, apoiada no seu novo álbum, "Alla".

Surma: "a vulnerabilidade inspirou-me"
Rui Palma (cortesia da promoção da artista)

Surma, a persona musical de Débora Umbelino, lançou há poucas semanas o seu segundo álbum "Alla". Embora tenha contado com um vasto elenco de convidados - as cantoras Ana Deus (dos Três Tristes Tigers) e Selma Uamusse, o artista eletrónico Noiserv, o saxofonista João Cabrita, Victor Torpedo (ligado aos Tédio Boys e mais tarde aos Parkinsons), Joana Guerra, a harpista Angélica Salvi, Ecstasya, João Hasselberg e o baterista Pedro Melo Alves -, o seu novo disco é apresentado como mais introspetivo, quando em comparação com "Antwerpen".

A mini-digressão nacional de Surma começa hoje em Leiria, no Teatro José Lúcio da Silva, e continua com mais quatro datas: a 10 de Dezembro em Braga (no gnration), a 11 de dezembro, no Porto [Novo Ático (Coliseu)], a 16 de dezembro em Aveiro (no Gretua) e, por fim, a 17 de Dezembro em Lisboa (na Culturgest).

Na pequena digressão que agora se inicia, tendo como base o “Alla”, o que é que vais conseguir levar de extra para palco e o que se pode perder nesse transplante do disco para o ao vivo? 
Perder, espero que não se perca nada. Em relação à performance em si, vai ser muito diferente do "Antwerpen", em que as pessoas estavam habituadas a ver-me sozinha em palco, com a roupa do dia-a-dia. Este espetáculo vai ser muito pensado a nível de cenografia. O espetáculo do "Antwerpen" não tinha esta complexidade. A nível de músicos, vamos ter uma roupa específica para os concertos. A dinâmica entre as músicas vai ser muito diferente. É importante que as pessoas saiam de lá impactadas e com a questão do que é que acabou de acontecer lá dentro. Esse é o meu maior objetivo ao vivo, que as pessoas possam sentir uma atmosfera completamente diferente daquela a que as pessoas estão habituadas e que entrem nessa bolha, com mais densidade a nível espiritual.  

Que convidados vais ter nos teus concertos? Quando e quem?
Eu vou ter o Cabrita, o Noiserv, a Selma [Uamusse], a Ana Deus. Infelizmente, não vou conseguir ter presencialmente outros convidados. O Cabrita vai estar em Leiria [no Teatro José Lúcio da Silva, a 6 de dezembro]. A Selma e o Noiserv vão estar em Lisboa [na Culturgest, a 17 de dezembro]. A Ana Deus vai estar no Porto [no Novo Ático (Coliseu), a 11 de dezembro]. 

Em que medida o "Alla" é um disco mais pessoal?
A todos os níveis. Sou uma pessoa completamente diferente da de há cinco anos, em que eu achava que a palavra "vulnerabilidade" não trazia nada e significava uma pessoa mais fraca. Eu estava completamente errada, com um pensamento distorcido. De há cinco anos para cá, percebi que ser vulnerável é incrível, faz bem e tem que deixar de ser um tabu nos dias que correm. Para mim, a vulnerabilidade tornou-se uma inspiração e uma palavra de força e de persistência. Essa vulnerabilidade inspirou-me para um trabalho mais autobiográfico, em que entro mais na minha vida e naquele clichê da luz ao fundo do túnel, para passar uma mensagem mais positiva àquelas pessoas que estão a passar por situações menos boas. Que passe uma mensagem de força e não de pena ou de inferiorização de alguém. Com a mudança desta minha pessoa, quis desafiar-me para temas para os quais ainda não tinha maturidade suficiente para as explorar. Não costumo ser essa pessoa que dá a conhecer a sua vida pessoal.

 

Esse teu reenquadramento é influenciado pela pandemia?
Não gosto muito de trazer o assunto da pandemia, mas aqueles três meses em que toda a gente parou repentinamente e em que ficámos um bocadinho perdidos, porque estávamos tão habituados àquela rotina caótica de não ter tempo para nós... Tive muitas crises existenciais, li muito sobre temas como a androgenia e a identidade de género, que queria explorar há imenso tempo e que quis levar para o álbum. Deu-me essa maturação e essa liberdade para criar sem medos. Aqueles três meses foram muito pesados em termos psicológicos, não só para mim. Ficámos em casa sem poder fazer nada. Isso deu-me uma abertura incrível e muita inspiração para criar o "Alla". 

É um desafio aos convidados eles entrarem no teu mundo bem próprio?
Acho que foi um desafio para todos nós. Não dei nenhuma referência, cada música foi escolhida ao acaso. Não lhes disse para fazerem coisas específicas, antes pelo contrário. Eu é que quis ir ao mundo deles e não o contrário. Tornou-se um processo de partilha entre amigos. Foi incrível e muito natural, sem pressão. Fomos um dia para estúdio e foi uma jam. O Cabrita trouxe o saxofone e começou a tocar sobre a música. Mas na música com a Ecstasya ['Did I Drop Acid and This Is My Ego Death'], aconteceu precisamente o contrário. Ela fez uma demo em que era o oposto: "quero o teu universo no meu universo". Tanto que ela me mandou uma demo que era o oposto da primeira, muito industrial e berlinense. É esse o seu ambiente, muito tecno. Depois foi só desfragmentar essa demo e fomos ouvir essa música e senti que estava lá a Surma e a Ecstasya. Eu não queria que só lá estivesse a Surma de todo. Quis desafiar os colaboradores a trazerem o mundo deles para mim. Inspirou-me muito em termos de composição. Não estava habituada a compor como eles compunham. Abriu-me muito a perspetiva no modo de compor música. Estava muito habituada a compor sozinha. Era um processo muito solitário. E também me trouxe outras ferramentas, o que foi incrível. 

Portanto, és tu a viajante que vai aos mundos deles e não o contrário.
Exatamente. Quis ser eu a ir ao encontro da música deles, misturar tudo no caldeirão bem misturadinho. Costumo dizer que se não fossem eles, não teria a mesma magia, nem a mesma atmosfera.  

Usas muitos instrumentos. Houve algum novo instrumento especial que tenhas descoberto neste processo de "Alla"?
Este processo de composição do "Alla" foi muito exploratório. Costumo produzir os álbuns numa salinha que parece um quartinho, no Serra, que é um espaço em Leiria, juntamente com o Rui [Gaspar], o meu "parceiro de crime". Tínhamos muitos instrumentos à nossa disposição: bateristas, [teclados] Casio muito velhos a pilhas, velas, coisas mais materiais como tubos de plástico para explorar a passagem de ar de um lado para o outro. O processo de exploração foi mais em termos de materiais do que de instrumentos. Foi muito divertido. Só numa música, temos cento e tal faixas de bateria. Explorámos as madeiras (da bateria), a tarola ou um outro modo de tocar timbalão. Foi um puzzle em termos de exploração. Foi mais a exploração do material de cada instrumento. A essência de cada material foi o que deu a narrativa ao álbum inteiro. Na nossa cabeça, aquilo não ia fazer nada. Vamos gravar isto, mas não vai fazer nada à música. Foi o que ligou a música do princípio ao fim. Esse processo foi muito interessante de se ver no final. Deu uma narrativa muito própria que não estávamos à espera. 

Foi, praticamente, um exercício de sonoplastia.
Exatamente! Foi muito mais isso do que um trabalho concreto numa certa música. Tínhamos as demos muito cruas e pensávamos: "o que é vamos fazer aqui?". "Olha, vamos para a bateria". "Embora experimentar aquela guitarra de duas cordas". Os sons deste álbum são muito fora e não são daqueles instrumentos tradicionais. Achei muita piada à exploração do material de cada instrumento. Foi mesmo sonoplastia extrema. 

 

Podes explicar-me o conceito da capa, que parece uma mistura de um cão com um humano?
A capa é muito complexa, da autoria da Teresa Murta, que é uma das pintoras mais incríveis que temos a nível nacional. Foi muito inspirada numa exposição que vi em Antuérpia do Renascimento, em que uma pintura do Bruegel falava da sociedade como um caos autêntico, em que os macacos estão numa espécie de bufê, a comerem-se e a atirarem comida uns aos outros. Achei muita piada, porque hoje em dia isto é assim: alcançar os objetivos sem pensarem no outro e sem terem empatia com o outro. Eu pensei: vou mandar esta referência à Teresa para ela fazer uma interpretação nos dias de hoje de forma mais abstrata. A capa tem muitas interpretações e muitos pormenores escondidos em que as pessoas às vezes têm que perder algum tempo para perceberem o que se está ali a passar, em que aquele ser meio abstrato parece um cão é um bocadinho a sociedade no seu todo. Aqueles três macaquinhos a dançar é aquela esperança que está no teu subconsciente, que no fundo pode demorar muito tempo, é uma luz ao fundo do túnel. Temos uma louça em baixo que representa o capitalismo. Ou seja, há muitas coisas na capa complexas. A Teresa mandou-me um mail a explicar-se cada elemento e o que significava e que é representativo do caos que vivemos hoje em dia. Homofobia e racismo são alguns dos assuntos abordados. A pintura é muito abstrata mas fala diretamente de assuntos que são muito importantes hoje em dia.   

Tens uma eletrónica muito afeiçoada a Portugal - é assim que a sinto. Isso acontece naturalmente ou é algo que procuras?
Nunca tinha ouvido que eu ia buscar à portugalidade. Uau, que fixe! Se calhar, é o meu subconsciente que vai buscar influências que tenho da música portuguesa. Nunca penso naquilo que vou criar quando vou para estúdio: se vou fazer uma música, ou a puxar para o rock ou para o punk. De todo! Eu chego lá e sai, muito consoante a disposição. Nunca vou com um pensamento pré-definido antes de compor.

Já trabalhaste para cinema, para o filme biográfico da "Snu". Já tens mais projetos nesse sentido?
Vou agora fazer sonoplastia para quatro peças de teatro. E para cinema, tenho uma proposta em cima da mesa. É uma das coisas que mais amo fazer é trabalhar em bandas sonoras para cinema e teatro. É uma liberdade incrível criar uma música dentro da nossa cabeça para determinado frame ou determinada cena. Para mim, é das coisas mais incríveis que posso fazer em termos de música. Sinto muito falta disso, já não crio para cinema há muito tempo. Mas espero que aconteçam este ano. 

Como é que costumas trabalhar em bandas sonoras? Tens acesso ao guião, vês cenas do filme que está a ser feito?
Já tive vários modos de criar bandas sonoras. Já criei a partir do guião. Já tive acesso às filmagens e criei a partir daí. Já tive só a ideia da cineasta. São sempre formas muito diferentes de criar bandas sonoras, mas todas elas me dizem muito. Houve várias que não colaram à primeira, outras que sim.