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Viagem aos Camarões: das danças tribais às bananas

Os Leões Indomáveis não vão querer ser domados pelos adversários de peso do Grupo G, como o caso mais óbvio do Brasil.

Viagem aos Camarões: das danças tribais às bananas
DR

Quem não se lembrar de várias surpresas provocadas pela seleção dos Camarões ao longo da sua história, pode ser tentado a menorizá-la e a fazer trocadilhos com o marisco que lhe dá nome, imaginando-os como um petisco a ser trincado pelos concorrentes de peso no Grupo G (Brasil, Sérvia e Suíça). Mas os Camarões vão querer ostentar a sua alcunha de Leões Indomáveis. Em vez de presas fáceis, podem ser eles os predadores. Mas diante dos caçadores que os aguardam, a tarefa não é fácil.

Apuramento de loucos no último minuto de descontos
Os Camarões estavam a disputar com a Argélia o play-off decisivo de qualificação para o Catar 2022. Os argelinos pareciam ter feito metade do trabalho quando foram aos Camarões vencer por 1-0. Só teriam que gerir a vitória em casa, no estádio Mustapha Tchaker, na cidade de Blida, a 45 quilómetros da capital Argel. Mas os noventa minutos da 2ª mão correm melhor aos Camarões que conseguem igualar a eliminatória. O suspense estaria reservado para o prolongamento. Na primeira parte desse prolongamento, o ex-sportinguista Slimani ergue-se nas alturas e cabeceia a bola na perfeição no canto direito da baliza camaronense. É a loucura mas o árbitro Bakary Papa Gassama estraga a festa argelina. É do homem do apito a comunicação da ilegalidade do golo (ditada pelo VAR). Com a segunda parte do prolongamento próxima do seu término e já a cheirar a desempate pelas grandes penalidades, alguém de Camarões se esquece de fazer a marcação ao argelino Touba que sem ninguém por perto até revela algum jeito para cabecear a bola para o fundo das redes, coisa que fez com toda a normalidade. Sendo o golo argelino depois dos 118 minutos, a viagem para o Catar já estava na cabeça de toda gente. Quando Touba saltou os placards para ir comemorar o tento, não foram só os restantes jogadores do onze argelino que o foram abraçar, foi todo o restante staff da equipa norte-africana. Até mesmo um dos fotógrafos acreditados foi levado pela emoção e secundarizou o zelo profissional para se juntar ao grande abraço coletivo daqueles jogadores. Cadeiras voaram da bancada, bandeiras verde-e-brancas pareciam lençóis no ar a serem agitados. Havia depois que queimar tempo, perante a impotência dos camaronenses. Slimani tem um ataque de cãibras e deita-se no relvado o máximo tempo que consegue. O tempo está a passar e com tantas demoras e festejos replicados no relvado, o relógio torna-se o outro amigo da Argélia. O jogo jogado propriamente dito só é retomado depois dos 122 minutos. E mesmo quando o jogo passa a ser jogado, torna-se feio. Qualquer bola nos pés dos camaronenses merece logo uma falta dos argelinos. Quando dois ou três futebolistas dos Camarões se irritam é a confusão no relvado. Os argelinos acham logo piada à ideia de uma batalha campal com o tempo a decorrer. Até o cotado guarda-redes dos Camarões, Onana (do Inter Milão), vai para o meio do campo envolver-se nas escaramuças. O médio camaronense Martin Hongla é o único que se lembra que ainda há tempo para jogar e empurra os seus companheiros para o que interessava: a disputa da bola. Só restava um minuto dos quatro de tempo extra, mas havia ainda um lançamento lateral favorável aos Camarões, mesmo que longe da baliza argelina: Kundé passa a bola rapidamente para Collins Fai, que faz um longo centro para a grande área. A bola alta vai parar à cabeça de Ngadeu-Ngadjui, que entrega o esférico para o pé sorrateiro de Toko-Ekambi (extremo muito útil no Lyon), que enfia a bola na baliza e tranforma o estádio Mustapha Tchaker num alguidar de gelo. O carimbo do passaporte para o Catar foi mesmo em cima da hora do fecho. É a oitava vez que a seleção dos Camarões está presente no Mundial de Futebol.


Convém não esquecer o calmeirão Aboubakar, melhor marcador do Campeonato Africano das Nações de 2021 com oito golos e grande responsável pela boa campanha dos Camarões, com um 3º lugar na maior competição do seu continente. O ponta-de-lança ex-portista é ainda um ativo dos 26 que vão representar os Camarões no Catar.

 

Os inesquecíveis Milla e Eto'o
Parece de filme a vida do avançado Roger Milla. Quando vivia na obscuridade o que parecia ser o seu final de carreira, a disputar então a pouco competitiva liga de futebol da ilha de Réunion, no meio do Oceano Índico, quando se torna de repente numa estrela planetária do futebol aos 38 anos, ao marcar quatro golos na memorável campanha da seleção dos Camarões no Mundial do Itália 90. Enquanto mera arma do banco e com o nome errado na legendagem televisiva (como Miller), entrou sempre a tempo para derrotar a Roménia com dois golos seus e para eliminar nos oivavos-de-final a Colômbia com outro bis, que se tornaria histórico por qualificar pela primeira vez uma nação africana para os quartos-de-final de um Mundial. Há ainda outro feito histórico a registar no Itália ?90: Milla passava a ser o marcador mais velho num Mundial, recorde que ele próprio bateria quatro anos depois, no Mundial de 1994, aos 42 anos. Além da dança em campo no Itália ?90, contornando adversários e desferindo a bola nos locais mais difíceis da baliza para os guarda-redes, havia ainda a dança emblemática da celebração dos golos junto à bandeirola de canto. Traquinas como um avançado deve ser, explorou ainda um momento anacrónico do guarda-redes colombiano Higuita que se achava um jogador de campo. Quando Higuita preparava um passe junto à linha de meio-campo, Milla aproveitou a hesitação do guarda-redes para lhe roubar a bola e para a sua prova de velocidade com bola nos pés até à meta, isto é, até à baliza sem dono e, na prática, à qualificação dos Camarões para os quartos-de-final. 


Bem longe da ilha de Réunion (onde Milla esteve esquecido), a disputar as ligas mais competitivas da Europa esteve o avançado Samuel Eto'o, um dos melhores jogadores africanos deste século. Foi jogador determinante no Barcelona e no Inter de Milão, tendo ajudado ambos os emblemas a ganharem a Liga dos Campeões, cada um à sua vez. O seu palmarés foi também enorme enquanto internacional A, tendo contribuido para os Camarões se tornarem Campeões de África em 2000 e em 2002 e para a inédita medalha de ouro olímpica em 2000. Eto'o esteve ainda presente em quatro Mundiais de Futebol, mas em nenhum deles esteve perto de brilhar tanto como Milla no Itália ?90. 


Houve vários jogadores de Camarões a mostrar talento em Portugal, além do já referido Aboubakar. O guarda-redes do Boavista, William, parecia ter asas para voar e desviar bolas. Meyong fez longa carreira no nosso país e tornou-se o melhor marcador do campeonato português na época 2005-06 com a camisola do Belenenses. O Vitória de Setúbal e o Sporting de Braga foram outros clubes portugueses onde Meyong marcou muitos golos. Atualmente, há outro ponta-de-lança camaronês em Portugal, chamado Joel Tagueu, que tem estado filiado ao Marítimo.  

 

Tudo a dançar!
A complexidade da música dos Camarões é justificada pela herança colonial de quatro países europeus diferentes (Portugal, França, Alemanha e Inglaterra) e de 250 dialetos, tal a diversidade étnica. O género musical mais conhecido do país é talvez o makossa, uma forma mais rápida, inocente e bonita de se fazer pop com os ritmos tribais reproduzidos na bateria pela técnica do mangambe. O saxofonista de jazz Manu Dibango (1933-2020) foi o nome forte da música do país, que projetou, ao seu modo, o makossa. Também a voz imprevisível do histórico Eboa Lotin (1942-1997) se intrometeu na história do makossa.


Frances Bebey (1929-2001) é a outra lenda da música dos Camarões, um cantor e contador de histórias, que se tornou um ator nas suas próprias canções, simbolizando a forte tradição oral do país. Outra característica forte da música dos Camarões é a dança, sobretudo o bem coreografado e tribal bikutsi, que tem sido encarnado pelos internacionalizados Lês Têtes Brulées, que levam a sua festa ao palco, com muitas danças e pinturas faciais.

 

Ensopados em especiarias
Há vários elementos habituais na gastronomia do país como as sementes de abóbora, banana (ou plantas de banana), inhame, inhame doce, batata doce, tomate, amendoins, milho e, só para fazes jus ao nome do país, camarões. As rodelas de banana frita são um acompanhamento habitual e para reforçar o sabor, é quase obrigatório usar especiarias e muitos picantes, incluindo nos caracóis (não são só os portugueses que gostam deste molusco). 


Muitos dos pratos de Camarões parecem esparregados, só que com picante. E há uma tendência evidente para os ensopados, um dos mais conhecidos deles o poulet DG, prato antes conotado apenas com as classes altas do país, à base de frango frito, envolvido em tomate, cenoura, feijão verde, banana frita e, claro, cebola e alho picado. O ndolé é também muito popular: trata-se de um ensopado de carnes, tiras de bacalhau e camarões, com alho francês e gengibre triturados, onde também não faltam a pimenta branca e a pasta de amendoim para deslumbrar ainda mais o paladar. 


A nível de bebidas alcoólicas, há uma que é particularmente bebida naquela zona da África central e ocidental, falamos do vinho de palma, um líquido branco extraído nas vertigens das copas das palmeiras, que tem uma rápida fermentação e está fortemente implantado nos meios rurais do noroeste dos Camarões e muito ligado aos rituais daquelas etnias.

 

Uma aventura no bosque
O território dos Camarões está repleto de reservas naturais. O parque natural de Mount Cameroon está contemplado por beleza botânica à volta, com a montanha vulcânica de quatro mil metros sempre à vista. Na costa, há belíssimas praias a serenar almas. Por trás das árvores, pode haver um macaco a espreitar, ou uma cobra mais sorrateira a assustar-nos. Mas a reserva natural mais especial talvez seja o Waza National Park também a norte, onde nos podemos cruzar com manadas de elefantes e de girafas, e quem sabe com gazelas, ou felinos de grande porte como os leões, os leopardos e as chitas, sobrevoados por numerosas aves, entre as quais as escuríssimas águias-gritadeiras. A sul destaca-se o Campo Ma'an National Park, povoado não só por elefantes, como por javalis, símios como os mandris, ou os lindíssimos pangolins-gigantes, numa biodiversidade florestal imensa.

Nas zonas mais humanizadas, o turista pode impressionar-se com a histórica Foumban, que respira cultura por todo o lado, desde a marca do artesanato espalhada por toda a povoação, aos numerosos rituais tribais, e ainda a monumentos como o palácio real ou a mesquita principal. Quem preferir a autenticidade em vez do lado mais pitoresco, pode ir à empoeirada cidade interior de Maroua, com o seu caos, de trânsito de motorizadas e a presença de cabritos juntos à estrada, entre outras peculiariedades. 

Os Camarões não exportam só futebolistas. São também conhecidos pelos basquetebolistas de primeira linha, que têm jogado na NBA, como o extremo dos Toronto Raptors, Pascal Siakam, ou o pivô dos Philadelphia 76ers, Joel Embiid, apesar da estranha ausência de grandes feitos por parte da seleção nacional do país.