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Reclusos do Linhó dançam nova "coreografia de vida"

O espetáculo de dança resulta da experiência no projeto "Corpo em Cadeia".

 Reclusos do Linhó dançam nova "coreografia de vida"

Nove reclusos da prisão do Linhó, em Cascais, vão apresentar domingo um espetáculo de dança resultante da experiência no projeto "Corpo em Cadeia", através do qual a equipa promotora espera fornecer recursos para uma nova "coreografia de vida".

Intitulado "A minha história não é igual à tua", o espetáculo final, com direção artística da coreógrafa Olga Roriz, acontece no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que apoia a iniciativa através do programa de inclusão social PARTIS.

Nove reclusos entre os 20 e os 30 anos estão esta semana em ensaios finais, e a agência Lusa assistiu a um deles, no Estabelecimento Prisional do Linhó, onde a antestreia irá hoje decorrer, a partir das 15h00, apenas para a comunidade prisional.

Sob a orientação de Olga Roriz e da bailarina e coordenadora do projeto, Catarina Câmara, os jovens aquecem o corpo e dançam os vários momentos de uma coreografia e de um trabalho semanal que lhes pode "mudar o pensamento e a vida".

Essa é a expectativa de Catarina Câmara, bailarina da Companhia Olga Roriz (COR) durante vinte anos e professora de dança, com formação na terapia psicológica Gestalt, que envolve o corpo: "O espetáculo final é importante, mas não vamos ficar por aqui. Queremos criar um momento seguinte de reflexão", com os reclusos participantes, para que busquem respostas a algumas questões. "O que é o "Corpo em Cadeia" para mim? Como posso transformar a minha vida? O que levo daqui, o que me falta?", são algumas das perguntas que vão "criar uma espécie de coreografia para a vida, com os recursos criativos", disse a bailarina à Lusa durante o ensaio, acrescentando: "Porque a liberdade é a possibilidade de fazer diferente, e fazer diferente tem a ver com imaginação".

O projeto "Corpo em Cadeia" está a ser desenvolvido desde 2019 no Estabelecimento Prisional do Linhó, e pelos ensaios já passaram vários reclusos que, entretanto, saíram da prisão, sendo o espetáculo final um dos passos da equipa que o desenvolve, reunindo bailarinos, psicólogos e voluntários.

O que os participantes estiveram a fazer durante meses foi um "trabalho de consciência do corpo e do movimento, através da linguagem da dança", e apenas um deles tinha alguma experiência. "Na altura eu inscrevi-me mais por diversão porque nem gostava de dança contemporânea. Com o tempo e com a ajuda da Catarina [Câmara] comecei a ter gosto, e mudei a maneira de ver as coisas, a maneira de lidar com o próximo", relatou à Lusa Fábio Tavares, de 28 anos.

Embora nunca se tenha visto como bailarino, diz que perdeu a vergonha inicial de fazer os movimentos nos ensaios: "Eu já não tenho vergonha de mostrar o que sei e o que não sei", comentou, acrescentando que o projeto o "ajudou muito" a ganhar autoconfiança.

Um dos momentos mais intensos do espetáculo acontece quando começam a desenhar as suas celas a giz no chão, num retângulo exíguo que contém uma cama, uma lavatório e sanita, e aí se movem, contando a sua história. Noutro momento, com um saco de plástico de roupas pessoais na mão, fazem fila e falam do que sentem.

Olga Roriz conta que o projeto tenha continuidade por mais dois anos, pelo menos, mesmo sem o apoio PARTIS da Gulbenkian, porque espera o apoio público dos concursos da Direção-geral das Artes. Roriz afirmou que "há muito trabalho a fazer" nesta área, também noutras cadeias. "Sentimos cada vez mais que não chega a parte artística, tem de haver um trabalho coeso de junção da parte psicológica e da parte artística que tem de ser feito. São homens com grandes problemas para além de desvitalizados fisicamente, também estão desvitalizados mentalmente", descreveu a criadora.

A coreógrafa considera que o projeto lhes provoca uma "reorganização física e mental": "Reorganização de pensar o passado, como estão no presente e como alcançar um futuro que não seja só do sonho, que seja mais concreto e este tipo de projetos ajuda imenso as pessoas a encontrarem-se. A própria direção da cadeia sentiu isso", disse à Lusa.

Jeferson Silva, de 27 anos, é um dos mais novos no projeto e já diz que "foi uma das melhores coisas" que lhe aconteceram desde que entrou no Linhó.

"Estamos aqui presos também a um paradigma, não temos atividades para nos sentirmos motivados", disse, acrescentando que sempre gostou de dançar, desde criança, quando a mãe o levou a uma escola em Londrina, no norte do Paraná, no Brasil.

Os ensaios com a equipa do projeto são, para Jeferson, que tem um solo no espetáculo, "uma das melhores coisas da semana, além da visita dos familiares".

"Corpo em Cadeia" "dá-nos a oportunidade de usar a nossa voz, de mostrar que estamos presos, mas conseguimos estar livres quando nos podermos expressar através da dança", disse à Lusa.

Tanto Fábio como Jeferson lamentam que "a maioria dos estabelecimentos prisionais não incentivem os reclusos a integrarem-se na sociedade" com mais atividades.

"Os reclusos chegam e ficam inativos durante anos, falam com uma educadora de seis em seis meses, pedem para trabalhar e ir à escola e demora quase um ano", relatou Fábio Tavares, enquanto Jeferson Silva sublinhou que o projeto "Corpo em Cadeia" é bom para mudar a rotina do recluso, "sempre fechado na cela, refeitório e pátio, e assim abre a mente". "Alguns reclusos chegaram aqui com uma vida de altos e baixos, viveram muitas coisas más. Precisam também de viver coisas boas e aprender com atividades que os ajudem para a vida", acrescentou Fábio Tavares, que defende mais projetos do género.

Olga Roriz, por seu turno, fica sempre surpreendida quando vê "pessoas que não tinham apetência para serem bailarinos [que] conseguiram chegar aqui e apresentar um espetáculo".

Apresentar o espetáculo será "uma situação de euforia para qualquer bailarino, por vezes avassalador, e aqui não será diferente", sublinhou ainda a coordenadora Catarina Câmara.

Por isso, continua a apostar na continuidade, para ver "o que correu bem e o que não correu bem".

Este projeto de arte participativa desenvolvido pela Companhia Olga Roriz, pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e pelo Instituto Gestalt de Florença, com o apoio do programa PARTIS - Práticas Artísticas para a Inclusão Social, visa criar condições para o desenvolvimento artístico e humano de pessoas em situação de privação de liberdade.

A ideia principal é "potenciar a experiência transformadora da dança junto de uma comunidade quase invisível aos olhos da sociedade, ajudando a capacitá-la na construção de projetos de vida assentes em escolhas mais preparadas, livres e conscientes".

A estreia do espetáculo "A minha história não é igual à tua" acontece no domingo, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, às 16h00. Os bilhetes têm um custo de cinco euros, com a receita de bilheteira a reverter inteiramente para o projeto.