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Guns N' Roses em Algés: o velho e bom rock de "estádio", muita pedalada e liberdade à beira do Tejo

A banda norte-americana voltou ao Passeio Marítimo de Algés e arrastou milhares. Foi a segunda ronda em Portugal da "Not In This Lifetime Tour".

Guns N' Roses em Algés: o velho e bom rock de "estádio", muita pedalada e liberdade à beira do Tejo
Jarmo Luukkonen

Foi um entardecer quase a escaldar no Passeio Marítimo de Algés. As previsões ameaçavam chuva, mas as nuvens dispersaram-se, com reverência, para o rock n' roll. Foi um concerto dos Guns N' Roses, mas também foi um auspicioso prenúncio dos festivais de verão com a merecida liberdade de movimentos, sem espaços entre nós, que tanta falta nos têm feito. Tanta falta que até o soundcheck de última hora dos Last Internationale, os primeiros a subir ao palco, parecia uma dádiva dos céus. A banda norte-americana agarrou o público que estava à frente e manteve a faísca acesa ao longo do concerto que acabou com uma oferenda em português. O coletivo deu um cheirinho do 'Grândola, Vila Morena', com um português deliciosamente desajeitado, e o público juntou as vozes para o ajudar. Ao mesmo tempo, o recinto ia enchendo por todos os lados até ficar coberto por uma multidão de gente, de diferentes idades e das mais variadas nacionalidades.


O guitarrista Gary Clark Jr. entrou no palco às sete da noite em ponto. Se o rock dos Last Internationale foi mais interventivo, o do músico texano levou-nos aos imaginários quentes do blues, rock, soul e r&b que iam compensando o desaparecimento do sol. 


A verdade é que quem ali estava queria os Guns. Eles que voltaram ao Passeio Marítimo de Algés, em Oeiras, para a segunda ronda, em solo português, da lucrativa e requisitada "Not In This Lifetime Tour". A primeira naquele espaço foi em 2017. É a digressão, com estatuto histórico, que voltou a colocar no mesmo palco o "incendiário" guitarrista Slash, o mais discreto e apunkalhado baixista Duff McKagan e o endiabrado e irrequieto Axl Rose. Senhores que, mesmo com um passado tumultuoso e interrompido, fazem parte da liga de campeões em matéria de concertos de "estádio"
 
A primeira vez que estes bons rapazes vieram juntos a Portugal foi há 30 anos - ainda com Gilby Clarke e Matt Sorum a integrar a estrutura que se desmoronou pouco tempo depois. Foi a 2 de julho de 1992 que os Guns (nome para os amigos) atuaram no Estádio José de Alvalade, em Lisboa, com os Faith No More e os Soundgarden convocados para a abertura. O tempo passa (demasiado rápido) e a vida tem destas coisas. É uma vida curiosa o suficiente para voltar a juntar o core de uma das bandas mais controversas e apetecíveis do mundo. E nós cá para ver. Em 2016 - mais de duas décadas depois e contra todas as evidências - o trio nuclear da banda de Los Angeles quis voltar à estrada.

O plot twist nesta história rejuvenesceu a devoção dos fãs e deu ainda mais ânimo aos pulmões dos gunners, dos mais velhos (que viveram a experiência quando eram miúdos e despreocupados) aos mais novos (e tantos que vimos) que, provavelmente, ao andarem a vasculhar a coleção de discos dos pais ou dos tios, descobriram o rock robusto e magnético da banda de L.A. e se fidelizaram ao grupo com a mesma entrega dos seus "anciãos". A entrega, essa, nota-se a léguas nas ruas que circundam o recinto até porque os fãs ostentam ao peito a paixão que os move. Tenham saído essas t-shirts, as mais desbotadas, da caixa sagrada da memorabilia ou das coleções de roupa mais recentes, importa tirá-las da gaveta para receber, com urgência e excitação, os Guns.

Além de Axl, Duff e Slash, a máquina ao vivo inclui Dizzy Reed, que viveu parte dos anos doidos dos Guns (de 90 a 93). O músico continua no posto dos teclados, enquanto Richard Fortus manuseia a guitarra rítmica, Frank Ferrer comanda a bateria e Melissa Reese assiste nos teclados e nos coros. 

Depois de ser exibida no ecrã uma espécie de curta-metragem - que juntava algumas figuras enigmáticas de terror num cenário a lembrar o jogo Prince of Persia - o grupo subiu ao palco quando o sol já se ia escondendo. Eram quase nove da noite.

Como manda a boa tradição gunner, 'It's So Easy', do disco de estreia "Appetite For Destruction", abriu o apetite voraz aos milhares de "devoradores" de rock a céu aberto que estavam à frente do palco. A energia renovada da malha de abertura contagiou o concerto que se estendeu por três horas. Houve muita pedalada, sprints de um lado ao outro do palco e, claro, a fórmula química da tríade old school que continua inquebrável. O público ia reagindo, eufórico, aos êxitos, mas quando vinham as músicas menos conhecidas optava por ficar mais recatado, a observar os acontecimentos no palco. 'Mr. Brownstone' - também do glorioso "Appetite For Destruction" - meteu Axl Rose a balançar e a rodopiar e fez a transição para a primeira de "Chinese Democracy" - a aventura "solitária" do vocalista. Foi a faixa que batizou o disco. Logo depois, 'Slither' piscou o olho ao capítulo Velvet Revolver que juntou grande parte da formação dos Guns a Scott Weiland (Stone Temple Pilots).

'Double Talkin' Jive', com um início instrumental demorado, continuou a agitar o recinto (e tudo à volta), com a bateria a soar frenética e Slash, no centro do palco, a manusear a guitarra com um virtuosismo quase transcendente. Seguiu-se outro êxito e mais uma passagem pelo disco de estreia. Os arranhões da introdução fizeram adivinhar o que vinha aí e o grito de Axl Rose acabou com o mistério. Ouviu-se o selvático 'Welcome to The Jungle'. 

"Como estão?", perguntou o agora mais macio Axl Rose que não escondeu o sorriso nas interações com o público. "Conseguiram sobreviver à Covid?", questionou o músico que parecia feliz por termos conseguido escapar da "jaula" dos tempos pandémicos. "É bom estar aqui", rematou antes de se atirar a 'Better' - outra de "Chinese Democracy" (2008). Ouviu-se depois 'Coma' - malha de longa duração com força para acelerar os batimentos cardíacos de qualquer fã e que testou ao limite a voz de Axl Rose, que, por breves momentos, acabou por não resistir ao esforço. "Estou com alguns problemas", confidenciou, às tantas, seguindo em frente, com garra e entrega, para a próxima que seria 'Reckless Life', relíquia dos primórdios resgatada no álbum "GN'R Lies", que não se ouvia ao vivo desde 1993.

'Estranged' - um dos capítulos mais introspetivos do volume "Use Your Illusion II" - emergiu do extenso alinhamento que continuou com 'Shadow of Your Love', dos Hollywood Rose, e 'Walk All Over You' dos comparsas australianos AC/DC.

A seguir, chegou mais uma malha para provocar frenesim no público. Ouviu-se o clássico 'Live and Let Die', dos Wings de Paul McCartney, que, mais uma vez, foi tecida para ser estrondosa ao vivo. No final, vimos Axl Rose, com o suporte do microfone levantado em braços, a observar a plateia, talvez para se fortalecer com a fonte de energia humana que tinha à frente. A cavalgada inicial de 'You Could Be Mine' manteve a multidão reativa. Por esta altura, Axl encostava-se a Slash e Duff corria, à solta, pelo palco.
   
'Hard Skool' e 'Absurd', duas canções lançadas recentemente, amoleceram o público, mas 'Civil War', que a banda dedicou à luta da Ucrânia que resiste à invasão russa, voltou a pô-lo em sentido. E assim continuou até porque, instantes depois, Slash e a guitarra dourada que tinha em mãos protagonizaram um momento a dois, com um fino fio de luz a incidir sobre o homem da cartola. O especialista em solos, que gentilmente nos deixou entrar na sua relação íntima com o instrumento que domina com uma naturalidade impressionante, não perdeu tempo e passou para o riff poderoso de 'Sweet Child O' Mine', agora com Axl Rose a envergar uma nova t-shirt e um chapéu de cowboy. 

'Rocket Queen', com destaque para a guitarrada de Richard Fortus, e uma versão de 'I Wanna Be Your Dog', dos Stooges de Iggy Pop, cantada por Duff McKagan, levaram-nos até às últimas três antes do encore.   

A essencial 'November Rain' sentou Axl Rose ao piano para entregar a voz à baladona que tanto nos acalmou as dores de crescimento. Cantou-a debaixo de um céu púrpura, enquanto deslizava os dedos pelas teclas e trocava olhares com a plateia. Veio 'Knockin On Heaven's Door', do histórico Bob Dylan, e 'Nightrain' - a locomotiva "desgovernada" que só parou para o encore.

No regresso ao palco, assistimos a uma comovente surpresa. Slash, Duff e Richard sentaram-se, lado a lado, nas escadas para tocar, às guitarras, uma versão do suave 'Blackbird', dos Beatles. Parecia que estávamos na sala de ensaio com eles. Que bonito e apaziaguador que foi. Axl Rose chegou mais tarde para dar continuidade ao tom mais acústico e a voz a 'Patience' - não sem antes assobiar a melodia.

'You're Crazy' e o festivo 'Paradise City', com os músicos a correr pelo palco, fecharam o alinhamento. Seguiu-se o agradecimento de grupo e os aplausos merecidos aos reconciliados senhores do rock que, além de terem abanado e desarrumado Algés e arredores, desempoeiraram memórias. E das boas.

Créditos das fotos de The Last Internationale e Gary Clarck Jr.: Rúben Viegas. Os Guns N' Roses não autorizaram a captação de imagens.