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Arcade Fire: o mar continua revolto

Artigo de opinião sobre o álbum "We", lançado neste mês.

Arcade Fire: o mar continua revolto
Michael Marcelle Facebook Oficial Arcade Fire

"We" é o primeiro álbum em cinco anos dos Arcade Fire e o último a contar com os serviços de Will Butler, o traquinas saltitante da banda nos concertos. 

Há uma vocação conceitual que não larga os Arcade Fire e que se volta a fazer sentir em "We". Uma permanente aflição apocalíptica que provoca insónias, com visões de um mundo em chamas, predomina no mensageiro do disco. 

A dinâmica multi-instrumentista do então sexteto, com aquele aparatoso apoio de músicos extra (incluindo a assídua violinista Sarah Neufeld), não mudou, mas confirma uma tendência: o casal Win Butler & Régine Chassagne está cada vez mais entrelaçado e, simultaneamente, entrelaça cada vez mais as canções à volta da sua força nuclear. Os duetos repetem-se, há pingue-pongue de cantorias e sussurros entre os dois membros mais antigos da banda - e na verdade, seus donos.  

Outra tendência que faz parte do ADN da banda de Montreal e, pelos vistos, deste disco é o engrandecimento homérico das canções, ligando-as entre elas debaixo do arco do mesmo título, mesmo que sejam diferentes. São cinco títulos, sete faixas e muitos encadeamentos mais. Nalguns casos, a vontade épica (a ousadia aventureira) produz maravilhosos resultados, noutros, soa insuflada e inconsequente. 

Vejamos faixa a faixa. Liricamente, 'Age Of Anxiety I' é um descendente direto da pandemia - "Fight the fever with TV / In the age where nobody sleeps / And the pills do nothing for me / In the age of anxiety" - onde as dúvidas que assolam não param de crescer e as respostas são cada vez mais uma miragem. A música aproveita o embalo dessa ambiguidade existencial - "Are you talking to me / Or about me?" - em que a fraqueza humana é a força da canção, um díptico que começa com a introspeção ao piano e continua com a ligação da discoteca de eletrónica a intensificar a canção. 'Age of Anxiety II (Rabbit Hole)' segue as mesmas transições e põe em andamento a locomotiva kraftwerkiana, com o som retro da maquinaria. 

 

'End of The Empire' é mais uma vaga de pandemia da covid-19, fruto de mais insónias à frente da televisão. Os pensamentos não podem ser positivos e abordam o fim da América, de costa a costa, da Califórnia a Nova Iorque. 'End of The Empire' é um agregador de referências clássicas, de Elvis Presley a Fleetwood Mac, nas suas mutações. Um dos colaboradores VIP deste disco, Father John Misty (Josh Tillman), não põe a dedada nesta canção, mas o seu fantasma de observador da América quotidiana faz-se sentir na IV parte de 'End of The Empire', com Win Butler a soltar palavras sobre um piano.

A enorme 'The Lightning' está repleta da esperança que guia Bruce Springsteen (referência paternal da banda), até fazer aquela aceleração para a apoteose tão ao gosto dos Arcade Fire, num bigue-bangue de energia capaz de espevitar um mundo inteiro.

 

'Unconditional I (Lookout Kid)' é uma das grandes apostas ao vivo da banda este ano mas no disco tem mais suor e ambição que glória. Já 'Unconditional II (Race and Religion)' é uma das pérolas de "We" que corre o risco de passar despercebida, como aconteceu anteriormente com 'Black Wave/Bad Vibrations' (do álbum "Neon Bible"), 'Empty Room' (do longa-duração "The Suburbs") ou 'It's Never Over - Hey Orpheus' (do disco duplo "The Reflektor"), temas que o grosso dos fãs se deu ao luxo de ignorar ou de esquecer. Em 'Unconditional II (Race and Religion)', é Régine Chassagne que está aos comandos vocais numa viagem synth-pop como uma fada que espalha magia ao estilo de Björk ou de Fever Ray (dos Knife). Tal como ocorreu com David Bowie no tema 'Reflektor', a achega vocal de Peter Gabriel é circunstancial e ocorre no final, sem ameaçar mudar minimamente o curso do tema. O nome é de peso, mas a utilidade é praticamente de figurante.   

O fade out de "We" ao som do tema-título não é só técnico, o apagamento deve-se também ao registo morno da canção. 

O mar continua revolto na música dos Arcade Fire. 18 anos depois do seminal álbum de estreia "Funeral", a banda continua a desafiar-se, a alterar coordenadas e a dar a ideia de que a qualquer momento uma grande canção pode acontecer. E de facto, ainda acontece - 'End of the Empire I-IV', 'Unconditional II (Race and Religion)' e sobretudo 'The Lightning I-II' fazem-nos a vontade.

Mas há um problema de medição que se repete nos Arcade Fire. Se o álbum monumental "The Suburbs" (de 2010) tinha músicas a mais, o sucessor carnavalesco "Reflektor" tinha uma incontinência de tempo e uma desnecessidade de dimensão de disco duplo. Em "We", depois da promessa de um número elevado de canções e de um longo interregno alongado pela pandemia, fica a sensação de que a montanha pariu um rato.

O fim do mundo que Win Butler canta na companhia de Régine Chassagne não é o fim do mundo dos Arcade Fire. O ânimo coletivo, que por exemplo abana 'The Lightning', é um motor que os empurra sempre para a frente, com a crença na salvação da música. Mesmo que os grandes discos - como "Funeral", "The Suburbs" ou "Reflektor" - estejam para trás, os Arcade Fire continuam bem vivos ao fim de 20 anos de carreira. As oscilações fazem parte do caminho.

 

Artigo de opinião.