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Miguel Angelo: companheiro diurno, solitário noturno

Entrevista ao cantor a propósito do seu novo álbum "Noite e Dia", que sai hoje.

Miguel Angelo: companheiro diurno, solitário noturno

Miguel Angelo desconfina hoje o que foi feito de forma confinada: o seu álbum de personalidade dupla "Noite e Dia", onde explora a variedade de disposições humanas que o contraste entre luz e escuridão estimula em 24 horas.

Se Miguel Angelo vive hoje como criador a solo, como vocalista dos Delfins revive em 2022.

"Noite e Dia" são dois discos num só?
Não, acho que é um só disco. Tem é duas partes. Quando comecei a estruturar esta ideia, comecei a pensar naqueles discos do Bowie, que são os meus favoritos, o "Low" e o "Heroes", que eram produzidos pelo Brian Eno, em que tinham um lado B completamente diferente do lado A. O lado A tinha canções e no lado B havia mais coisas ambientais e mais experimentais feitas com o Eno. Quando estava a trabalhar com o Rui Maia, surgiu-me esta ideia. Se calhar, isto pode ser um lado B de um álbum à antiga. Pensei: isto pode ser interessante, com um lado B mais noturno, que começou nos confinamentos, feito em casa, sozinho, com o computador, usando uma linguagem mais eletrónica, que depois apresentei ao Rui Maia, que produziu, mudou e arranjou. Depois tenho as canções mais pop, ou rock, que foram já feitas depois de outubro passado, na sala de ensaios, com os músicos que me acompanham. Achei que seria interessante esses discos duals, tendo um lado A de dia, de canções, e um lado B de noite, mais eletrónico. 

 

O que é que é mais forte em ti: a noite ou o dia?
Não sei. Certos momentos do dia, certos momentos da noite. Não tenho preferência. Hoje levanto-me muito mais cedo que há vinte, trinta anos. Se calhar, na altura, vivia mais a noite, hoje vivo mais o dia. Gosto muito da solidão, seja no quarto de hotel ou em casa. E gosto muito de escrever. À uma da manhã, posso ir a um teclado midi.
É um balanço, um yin-yang da minha existência. Em qualquer pessoa, há esse balanço yin-yang.    
 
O Rui Maia é um artífice deste disco. Como é que ele aparece?
Eu tinha já trabalhado com o Rui Maia em termos de remixes, no tema 'A Canção', que saiu num EP em vinil no "Grotesco Vs. A Canção". Conheço o Rui há muito tempo, desde o tempo dos X-Wife. Estou na mesma agência que ele e que os seus projetos. E acabou por haver uma grande proximidade. Não me admira que ele esteja a tocar teclas e guitarra para os GNR. Além da sua vertente eletrónica mais indie, o Rui tem a história da música popular atrás dele. É um grande conhecedor de música e um apreciador de vários géneros musicais. É aquela linguagem em comum que encontro em certas pessoas e que me faz falar e ficar logo amigo delas. Fico a conversar sobre álbuns, capas, histórias antigas do rock & roll. O Rui tem essa proximidade que permite essa facilidade no trabalho, embora esse trabalho tenha sido feito à distância. Fiz em minha casa e ele fez em casa dele. Gravei também coisas definitivas no Estúdio 1 Só Céu, em Cascais. Não houve uma sessão em que estivéssemos os dois juntos. Esse era o propósito da coisa: aproveitar o confinamento para ver o que surgiria dali e de que maneira afetaria a nossa criação e a nossa produção. Os resultados do Rui surpreenderam-me muito e levavam-me para os caminhos que eu queria. Fiz uma sinopse ao Rui: isto é uma coisa completamente livre, não há pressão de singles, nem de cronometragem das canções. A minha ideia era que o lado B fosse uma coisa muito mais abstrata. Assim foi. Fechámos esse lado Noite muito rapidamente.  

A eletrónica é um caminho a explorar ainda mais? É um caminho possível?
Acho que sim. São ferramentas, como eram o baixo, as guitarras, a bateria e os pianos. Há a facilidade de serem usadas em modo caseiro, de as gravarmos em casa e serem definitivas em disco, o que não acontecia antigamente. Muitas das coisas [que estão no disco] estão gravadas. Até mesmo alguns coros que estão no lado do Dia foram gravados em casa. Já temos equipamento de estúdio que nos permite não serem meramente maquetas. É muito bom porque há aquela história mítica mas que é verdadeira em que as maquetas ficam às vezes melhor que as gravações finais de estúdio. Lembro-me de há uns anos atrás termos ido com umas belas maquetas para estúdio [nos tempos dos Delfins] e com aquela ideia de que "este tema é que é bom para single" e de chegarmos ao fim e acharmos que era afinal outra. Às vezes, aquela energia inicial que pomos nas maquetas é muito difícil em modo laboratorial de estúdio, com outros a olharem. Este método digital é libertador nesse sentido. Há coisas que são feitas e que ficam lá. Posso dizer-te que há uma voz no lado do Dia, no 'Nocturno 4', que é feita com uma letra improvisada, que foi jorrando enquanto estava no estúdio sozinho, com a parafernália eletrónica à volta, e as palavras foram surgindo à medida que a melodia era construída. Eu tentei várias vezes gravar aquilo bem e replicar e não consegui. Acabámos por usar essa voz inicial, com alguma ajuda digital, para a mistura final do tema.  

 

O vídeo de Déjà Vu recria os clipes 'Subterranean Homesick Blues' de Bob Dylan, 'Ashes to Ashes' do David Bowie, 'Rio' dos Duran Duran, 'Budapeste' dos Mão Morta e a última atuação dos Beatles no rooftop. Porque é que escolheram aqueles cinco momentos de música da história da música popular no vídeo de Déjà Vu?
Vivi muito os anos 80 e a MTV. Era fascinante esperar pelo novo teledisco daquela banda. O vídeo continua, aliás, a ter muita importância. [O videoclipe de 'Déjà Vu'] são referências musicais minhas. Eu não iria escolher um vídeo do 'Barbie Girl', por exemplo. Poderia escolher num cenário de humor. Aqui não era fazer humor, nem fazer caricatura. Era respeitar aqueles vídeos, citando-os, sem cair no ridículo. Acho que todo o desafio da produção era voltar àqueles tempos, nunca com os orçamentos daqueles tempos, mas com boa vontade e empenho daquela equipa. Escolhi aqueles vídeos porque foram momentos que me ficaram na memória. Os cartões do Dylan ficaram na memória de toda a gente, como também aquele belo plano de Simon Le Bon num iate nas Caraíbas. No Déjà Vu, pensei no que é que se poderia associar videograficamente. E foi assim. Acho piada que os vídeos não sejam uma completa leitura das letras. E neste caso não é. Mas é a leitura do título da música. Gosto que o significado do vídeo não seja o significado da letra. Acho que enriquece o próprio vídeo. 

 

Preferias Duran Duran aos Spandau Ballet?
Musicalmente, eu era mais Spandau Ballet, especialmente no primeiro álbum ["Journeys to Glory"], e até no segundo ["Diamond"]. Quando passavam na rádio o "Journeys to Glory", sobretudo o António Sérgio, ficávamos doidos com aquilo. "Que som é este? Que desenhos de sintetizadores são estes? Que sequências são estas?". Já conhecíamos os Kraftwerk, mas na música britânica nunca se tinha ido tão longe [em relação ao uso de sintetizadores]. Era a época dos new romantics. Eu era [mais] Spandau Ballet, se bem que tivesse visto ao vivo os Duran Duran no Pavilhão Dramático de Cascais na altura do [álbum de 1982] "Rio". Não tinha visto os Spandau Ballet ao vivo mas vi-os curiosamente em playback na bela "Febre de Sábado de Manhã", no Pavilhão de Alvalade, num passatempo que tinha ganho. Fui conhecer os Spandau Ballet e fiquei a falar com o [vocalista] Tony Hadley. Encontrei-os mais tarde pelos bares dos Bairro Alto que frequentávamos, como o Jukebox. Ao vivo, não os vi nessa altura. Vi-os bastante mais tarde no MEO Arena, num concerto bem fixe, fiquei muito surpreendido com a energia deles. Os Duran Duran eram mais aqueles singles que se impunham, sobretudo os vídeos. Na comparação entre os vídeos dos Duran Duran e dos Spandau Ballet, ganham claramente os Duran Duran, com aquelas grandes produções cinematográficas.

 

Estiveste no Dramático de Cascais a ver os Duran Duran, mas imagino que não tenhas estado naquele espera em massa no Aeroporto da Portela?
Não, isso não. Ia bem cedo para os concertos, para as grades. Às três da tarde, já estava à porta do pavilhão, à espera de entrar, para ficar na primeira fila, onde vi os Duran Duran. Foi um concerto um bocado chato porque o baixista [John Taylor] estava magoado e não tocou. O roadie tocou o concerto todo e o John estava lá, com um copo na mão, de lado do palco, visivelmente divertido a vê-lo tocar o concerto todo. O John Taylor não tocou, foi pena. Mas foi um belo concerto, um pavilhão completamente cheio com malta muito nova. O público dos Duran Duran eram miúdos. Eu tinha para aí uns 14 anos e era tudo gente da minha geração, com 12, 13, 14, 15, 16 anos, e que lá estava. 
Havia a componente visual que era muito importante para nós. Era muito importante haver uma linguagem geracional, que foi para a eletropop e que se via bem nos vídeos, de pessoas a vestirem-se de maneira diferente do que tinha havido no punk e na new wave, que era uma coisa mais rebelde e rota. Havia um cuidado cinematográfico dos new romantics para entrarem num bar, ou numa discoteca. Penso que a minha geração agarrou isso nessa altura, de achar piada e de chocar um bocadinho: homens com saias, camisas do Luís XV, eram elementos que chocavam e que as pessoas ficavam a ver na rua. É giro que haja uma geração que goste de chocar. Hoje em dia, é tudo muito politicamente correto: não se pode dizer isto, nem vestir aquilo, nem fazer aqueloutro. Há mais liberdade quando as pessoas podem chocar, sem insultar as gerações anteriores e definir a sua linguagem estética e artística.    

Tens uma música no disco que se intitula 'A Ver o Mar'. Continuas a ser um músico muito virado para o mar?
Sim. [O tema 'A Ver o Mar'] É mais do que sobre o mar. Convidei o Pedro de Tróia. Da nova geração pop, [o Pedro de Tróia] é um dos que mais tem a linguagem que os Delfins tiveram, e, antes, os Heróis do Mar. Este foi um tema que começou no computador e não com banda. Mesmo a nível de baixo, comecei a achar que o tema estava num território que me lembrava os tempos mais antigos dos Delfins, como [a versão a meio dos anos 80 de 'Salva-Vidas' do duo feminino] Clube Naval, ou os Heróis do Mar. "Tem piada, se calhar o Pedro é o tipo certo para cantar isto, só para não fazer um disco inteiro a cantar sozinho". Já tinha falado com o Pedro para se fazer alguma coisa há uns tempos atrás. Era num projeto independente que depois não foi para a frente. Ficou ali a pulga atrás da orelha. E acho que este tema é perfeito para ser cantado por nós os dois.

E agora vão poder colaborar novamente em palco, no Maria Matos?
É verdade, o Pedro vai estar em palco, o Rui também e até o Co$tanza, que fez umas remisturas para o lado do Dia que é o 'Adiei'. O Co$tanza vai estar comigo a tocar ao vivo essa remistura.  

Antes da pandemia, os Delfins chegaram a anunciar concertos, como no South Sound Arts. É uma questão de tempo o regresso mais efetivo dos Delfins?
É uma questão de tempo, acho que sim. Talvez 2022 traga esse grupo de concertos que vive debaixo de um teto chamado celebração. É só isso, uma celebração dos singles da carreira desse grupo. É o que está combinado, mas que a covid-19 veio alterar. Mantêm-se os planos atrasados e se calhar aproveitando para algumas efemérides. Está já planeado talvez até o Rock in Rio, que talvez seja um dos primeiros passos desse grupo finito de concertos que os Delfins reagrupados se propuseram dar. 

 

Não põem a hipótese de reativar o ciclo criativo?
Acho que não. Estas coisas são boas é assim. Podemos celebrar o que foi feito e que foi incrível. As pessoas gostam das nossas canções, que continuam a passar na rádio. Ouvimos o 'Aquele Inverno' aqui, o 'Um Lugar ao Sol' acolá, o 'Nasce Selvagem'. Se as canções continuam a ser ouvidas, vamos dar às pessoas aquilo que elas querem.

Miguel Angelo atua no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no dia 30 de novembro.