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Gigantes do jazz: cinco por instrumento

No Dia Internacional do Jazz, fazemos uma diagonal histórica ao género.

Gigantes do jazz: cinco por instrumento
Associated Press

Já vão mais de cem anos a tornar a humanidade mais charmosa, graças ao jazz, essa música de origem popular que se revestiu de classe e erudição ao longo de muitas décadas. O progresso ainda não terminou.
 
Escolhemos cinco dos maiores em cada instrumento vital no jazz, numa seleção árdua, subjetiva e obviamente discutível, mas que tenta ser a mais simples possível.  
  
Voz 
A voz é o sopro da alma mais natural. No jazz, o talento vocal dispensa exuberância. Quanto mais medido o tom, mais bonito é. O vozeirão rouco de Louis Armstrong já vinha calibrado de virtude e nem o esforço em paralelo no trompete lhe retirava o fôlego... e aquele riso cheio na face. Mais límpida era a voz - para muitos, A Voz - de Frank Sinatra, que se erguia com uma classe senhorial. Nele, conteúdo e forma confrontavam-se: maior a insegurança sentimental do que cantava, mais segura era a forma como a voz tomava o microfone. Nat King Cole foi outro galã de fato de um tempo dourado, cuja elegância visual ganhava ainda mais veracidade mal começava a cantar. 
Quem nunca perdia a suavidade, por mais amargas que fossem as palavras, era Billie Holiday. A sua respiração era um rico ecossistema de centenas de tons em dois minutos e meio de canção. Foi a consciência histórica de um passado esclavagista em 'Strange Fruit' que Nina Simone, também com memória viva do que era a América racial, igualmente cantou. Brindada com uma voz tão bela que quase dispensava esforço, Nina Simone abanava-se junto ao piano que tocava, fazendo história a cada atuação. A sua ação provocava o acontecimento, fosse onde fosse.    
 

 
  
Saxofone 
O sopro do saxofone tem sido o oxigénio do jazz quase desde os primórdios. Este instrumento metalizado e encurvado tem uma palheta de madeira na zona bocal que faz toda a diferença, com alguns dos melhores músicos do século XX a manejá-lo, como Charlie Parker, ou “Bird” (como era alcunhado), que, com a sua destreza e celeridade, conseguiu empurrar o jazz para o ciclo de bebop, nos anos 40, que tanto entusiasmou a escrita de Jack Kerouac. O homem da Beat Generation colocou-o ao mesmo nível de génios de outros tempos como Beethoven. No calor do momento, foi premonitório.
Sempre na costa este norte-americana, o ainda vivo Sonny Rollins, "o grande improvisador", foi outros dos gigantes do saxofone que fez a transição do bebop para o hard bop nos anos 50. Dexter Gordon fez a mesma transposição e algumas das suas obras-primas do hard bop também são suas, como o caso do álbum de 1962 “Go!”. Tal como quase todos do seu ofício instrumental, tocava de olhos cerrados ou muito cerrados, de pose reta e elegante. Tão elegante quanto o som que emitia. 
O encorpado John Coltrane deu volumetria ao jazz e um negrume mais escuro que as noites azuladas. Ajudou a escrever a história do jazz e a reescrevê-lo quase a cada álbum que lançava. Morreu cedo com 40 anos, deixou standards às pazadas no testamento e alas ainda mais abertas para o free jazz, onde Ornette Coleman era já rei, desde que o apresentou ao avant-garde no álbum para a vida "The Shape of Jazz to Come" (de 1959). Tinha talento multi-instrumentista de sobra para pôr as mãos no violino ou no trompete, mas o saxofone era o seu objeto predileto. 
 

 
  
Piano 
O piano é a Sua Majestade da nação jazz. Os dedos ganham dotes de dançarino sobre o teclado do piano. Fisicamente, o piano de cauda é espaçoso e uma dor de cabeça para os homens das mudanças, mas musicalmente adquire uma agilidade elástica omnipotente. Mesmo quando sorrateiro, aponta caminhos para cada música. Quando toma os solos e todos os olhares paralisam sobre ele, parece um flamingo a bailar. Duke Ellington foi dos que melhor percebeu a sua mecânica. Homem para ser acompanhado por muita gente, sobretudo orquestras, respirou os tempos áureos do swing dos anos 30 e 40 com uma nobreza de nome e de imagem. 
Bud Powell era outro ambidestro sobredotado. Ajudou a modernizar o jazz, num corridinho que, nos anos 50, ninguém o parava. Com um sentido rítmico inovador, Thelonious Monk atraiu os melhores músicos, que com a química que gerava, conseguia superar a soma das partes. Foi o que fez, por exemplo, no álbum de 1957, "Brilliant Corners". Se houvesse panteão do jazz, este disco seria um passaporte espiritual para a lenda Monk. 
Outro polirrítmico era Cecil Taylor, um explorador incansável e talvez por isso se tenha tornado o grande pianista avant-garde. Os seus concertos eram um autêntico temporal sobre as teclas. Mas no final, o instrumento estava impecável. Herbie Hancock também só tem olhos para o futuro. Recorre à eletrónica, é insaciável nas fusões e foi sempre amigo dos sintetizadores. A panóplia à volta do seu piano é grande mas Herbie sabe sempre para onde se virar (piano, sintetizadores, computador portátil, etc). Que bom o banco permitir tanta agilidade, mas nunca será de descurar uma cadeira giratória para o sr. Hancock. 
 


  
Contrabaixo 
O contrabaixo é volumoso e delicado de se transportar num avião, mas as suas passadas de matulão marcam o andamento da música, como se fossem a sua fonte energética. É um instrumento lindíssimo de se ver... e mais de se ouvir, tanto dedilhado como vibrado por um arco. Charles Mingus é um dos líderes de banda mais carismáticos na função de contrabaixista. Atravessou as várias fases históricas do jazz e levou-as sempre consigo nas várias direções em frente que encontrou. O álbum de 1959, "Mingus Ah Um", é um marco na história do jazz. 
Charlie Haden é outro dos contrabaixistas com grande obra em nome próprio. Prendeu-se às raízes, incluindo os espirituais negros, e, quando fazia parte da banda de Ornette Coleman, foi um dos que feriu a ditadura portuguesa quando teve a coragem de dedicar uma das músicas do concerto aos movimentos de libertação das colónias africanas, provocando uma das maiores ovações do festival Cascais Jazz em 1971, perante o olhar da PIDE. Ron Carter (também violoncelista) já fez mais de duas mil gravações, numa carreira com mais de 60 anos de carreira. Ron Carter é um dos músicos vivos do jazz com maior peso histórico. 
Os europeus também tiveram mãos para o contrabaixo, como o inglês Dave Holland, com percurso muito assente nos Estados Unidos, e o dinamarquês Niels-Henning Ørsted Pedersen, mais operativo nos países nórdicos. 
 

 
 
Bateria 
O retumbar da bateria adquire no jazz um charme maior. As baquetadas metralhadoras nos vários tambores e pratos têm uma outra solenidade e os vários solos são o tributo merecido ao instrumento que só o jazz pode fazer. 
Art Blakey foi dos que melhores braços e pernas teve para ocupar uma bateria e, a partir dela, comandar uma banda, como o caso dos Jazz Messengers. Com álbuns como "Moanin'" (de 1959) ou "A Night in Tunisia" (de 1961), Art Blakey e os Jazz Messengers douraram ainda mais a história gloriosa da editora Blue Note. 
Quem esteve a baquetar e a pedalar nas mudanças do jazz foi Max Roach, a acompanhar líderes como Charlie Parker, Thelonious Monk ou Miles Davis. Comandou batalhas de bateria entre vários colegas do instrumento, explorando melhor que ninguém a gama percussiva à disposição do jazz, como ficou documentado no seu álbum de 1979, "M’Boom". Tony Williams, Billy Cobham ou Paul Motian foram outros magos da bateria que deram muito misticismo ao jazz. 
 

 
  
Trompete 
É o grande instrumento totalmente metalizado do jazz, do qual se sopram os mais delicados agudos. Foi com as mãos e os lábios no trompete que estiveram alguns dos maiores cérebros do jazz. Miles Davis nunca parou de transformar o género desde os anos 40 aos anos 80, alimentando-se de tudo o que lhe interessasse, poderia ser flamenco, funk ou hip hop.  
Dizzy Gillespie, conhecido pelas suas bochechas cheias de ar, também nunca foi muito de estagnar e ajudou a fazer do jazz um imenso camaleão. O cantor Chet Baker também usava o ar para encher de elegância o trompete e nem a decadência física provocada pela toxicodependência, nem a destruição da dentição, inviabilizaram os seus assomos de classe. 
Houve mais gigantes no trompete. Lee Morgan fez o crossover para o r&b através do tema de 1963, 'The Sidewinder'. Hugh Masekela tornou-se na maior figura do jazz sul-africano e, provavelmente, do seu próprio continente. 
 

 
 
Guitarra 
A guitarra tem no jazz uma finura milimétrica e uma irmandade com os blues, mas numa via mais complexa. Charlie Christian engrandeceu o instrumento de seis cordas, tornando-se um dos primeiros a usar guitarra elétrica amplificada no jazz, vincando a ideia de que um guitarrista poderia ser solista e não só um mero acompanhante. Numa vida tão curta, conseguiu tornar-se uma figura referencial do swing e do bebop, com uma habilidade e liberdade na guitarra que é um deleite para os ouvidos. Wes Montgomery é um seu descendente, mas também inventou umas coisas com a sua guitarra elétrica, mal fazendo ideia que iria inspirar o smooth jazz décadas mais tarde.  
Noutra guitarra, a acústica, Django Reinhardt tornou-se o primeiro grande vulto europeu do jazz, tendo feito de Paris o grande epicentro do jazz fora dos Estados Unidos. Das caravanas de ciganos às ruas de Paris até aos clubes, alargou os conceitos do jazz, colocando a guitarra acústica ao centro, e o violino como o seu par principal. Também na guitarra acústica, Al Di Meola tem-se dedicado ao tango e ao flamenco. Antes, já era um músico de fusão, e mesmo um jazz-rocker. Não exatamente um jazz-rocker e não exatamente alguma coisa que não ele próprio, Frank Zappa era demasiado satírico e fora da caixa para caber nalgum género. Mas o jazz espreitava naqueles combinados instrumentais, sempre à espera de se intrometer. A genialidade de Zappa também escorria para os seus dedos sempre que tocava a guitarra elétrica. Foi um dos guitarristas mais inventivos do século passado.  
 

 
 
Outros instrumentos 
Destacamos mais outros instrumentistas, cinco ao todo. Um por cada instrumento. Benny Goodman é um dos históricos do clarinete, um instrumento muito usado nos tempos do swing, e até antes, nos tempos de génese do jazz em Nova Orleães. Outro instrumento que contribuiu muito para a elegância do jazz foi o vibrafone, essa estrutura metalizada de tubos tão engenhosamente percussiva, que teve criadores da dimensão de Milt Jackson, com uma obra que se expande em cinco décadas diferentes - dos anos 40 aos anos 80. 
O trombone é outro instrumento metalizado muito querido no jazz, com a particularidade de ter uma parte móvel e um som mais grave que o trompete. Um dos gigantes deste instrumento foi sem dúvida o inovador J.J. Johnson, na vertigem da dianteira do jazz entre os anos 40 e os anos 60. 
O jazz foi aberto a outros instrumentos, como a harmónica, que teve como nome maior o belga Toots Thielemans, ou nos domínios da percussão, um instrumento mais étnico como o berimbau, muito usado pelos afrobrasileiros e muito ligado às tribos africanas. No jazz, o grande tocador de berimbau foi o brasileiro percussionista Naná Vasconcelos. Graças a ele, o público dos festivais de jazz habituou-se a esta vara com uma cabaça e uma corda, interpretado de forma tão empolgante. 
 

 
 

Nas fotos: (em cima, da esquerda para a direita) Nina Simone, Miles Davis e Frank Sinatra; (em baixo, da esquerda para a direita) Benny Goodman, Max Roach e Thelonious Monk.