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Carlos do Carmo: dignidade até ao último fôlego

Sai hoje o álbum final do fadista, "E Ainda...". Falámos com o leque de colaboradores de "primeira água" desta obra.

Carlos do Carmo: dignidade até ao último fôlego
Kenton Thatcher (cortesia Universal Music)

Carlos do Carmo espremeu tudo o que de melhor havia na cultura portuguesa (da literatura à música) e espremeu-se a si mesmo até ao último fôlego, até ao último segundo, ao serviço da sua enorme voz. Foi isso que também aconteceu, de forma imponente, no trabalho para o seu último álbum “E Ainda…”, que ocupou os seus últimos três anos de vida. O disco póstumo sai hoje, precisamente no Dia Internacional da Voz.

O alinhamento final do álbum só ficou definido após a sua morte a 1 de janeiro deste ano. "E Ainda..." tem a fasquia alta a que Carlos do Carmo sempre se impôs, com os textos e pensamentos de alguns dos grandes escritores e poetas da nossa língua (Sophia de Mello Breyner, José Samarago, Mia Couto, Hélia Correia), e compositores à sua medida que bem o conhecem como o velho amigo Paulo de Carvalho (que contribui com duas composições) e o maestro António Victorino D'Almeida. 

Como a rebelião de aventureiro sempre instigou a sua alma, a plataforma de Carlos do Carmo foi sempre uma jangada movediça que nunca quis parada. Conseguiu ter para si pela primeira vez uma canção escrita por Jorge Palma e uma composição do mestre da guitarra portuguesa Mário Pacheco e ainda... e teve a honra de ser o primeiro cantor de um poema de Herberto Helder - 'Poemas Canhotos', com composição de António Victorino D' Almeida. 

Nessas danças de jangada, teve ao leme um trio de instrumentistas de primeira, com José Manuel Neto na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença na viola de fado e Marino de Freitas no baixo acústico. "Ele amava o que fazia. Ele tem o mais rico espólio da música portuguesa. Cantou com os melhores poetas, cantou com os melhores músicos do país, teve os melhores orquestradores, alguns deles com quem ainda trabalhei como o Thilo Krassman ou o José Luís Tinoco", enquadra Marino de Freitas, que acompanhou de perto Carlos do Carmo desde 1996, quando gravou o álbum “Margens”. 

 


    
Cantar pela primeira vez Herberto Helder
Os poemas de Herberto Helder já tinham sido musicados (como o caso do projeto Wordsong), mas nunca tinham sido cantados. Carlos do Carmo sonhava poder cantá-los. E isso aconteceu com os 'Poemas Canhotos', cuja composição foi endereçada a António Victorino D' Almeida. Tal como nos recorda o maestro, "o Carlos falou-me que 'toda a gente me diz que o Herberto Helder é muito complicado de se musicar, mas eu gostava muito de fazer um fado com um texto dele. Vê se te entendes com aquilo'. Fui dizendo que me entendi com relativa facilidade. Pelo menos, não foi mais difícil do que fazer o Saramago e vários poetas que trabalhei no álbum que a Maria João Pires fez com ele (no disco de 2012, "Maria João Pires/Carlos do Carmo"). Ao todo, acho que fiz 14 ou 15 fados para o Carlos”.
"Este trabalho foi muito especial porque ele sabia que era o último trabalho que estava a fazer. E estava muito entusiasmado porque ia cantar um grande poeta português que, por acaso, é meu conterrâneo: Herberto Helder. É a primeira vez que é cantado”, refere com entusiasmo o baixista madeirense Marino de Freitas.
António Victorino D’Almeia teve tempo para burilar 'Poemas Canhotos'. "Felizmente, ele (Carlos do Carmo) ainda estava bem. Ele dava-me o texto, eu fazia a música. Eu ia para casa dele. Eu tocava, ele gravava. O nosso trabalho conjunto era muito rápido. Ouvia e gravava, e quando ele considerava que a coisa estava pronta, começávamos a fazer em conjunto os dois". 

 

A canção devida de Jorge Palma
O letrista Jorge Palma faz parte de um grupo de gente das letras de categoria imortal cuja escrita serviu de base para os fados de Carlos do Carmo neste álbum final. “Sinto-me altamente lisonjeado”, desabafa.
Jorge Palma é o único criador do álbum “E Ainda…” que é simultaneamente letrista e compositor. O tema em causa é Canção de Vida. Jorge Palma conta-nos tudo: "A história vem de longe. O Carlos terá me dito: ‘Há vinte anos estou à espera de uma canção tua. É uma canção, não é fado, que não sabes escrever fados. Não te metas nisso’. Quero gravar uma canção tua’. Isto foi há 500 anos. E eu disse: ‘logo se vê’. A gente ia-se encontrando ao longo dos tempos e ele perguntava-me: ‘então, a minha canção?’. Eu lembro-me de uma das vezes, não foi há assim tanto tempo quanto isso, terá sido há sete anos, depois de um espetáculo - eu, o Carlos, o (Luís) Represas, o Ivan Lins - quando me pergunta: ‘então, a minha canção?’. Começámos a brincar com a ‘canção devida’, tipo ‘devo-te uma canção’. Tendo em conta o amigo que era o Carlos do Carmo, com as capacidades todas, começou a sair-me um princípio de texto. A música veio por arrasto e depois demorei pouco tempo. Em 2017, já tinha a canção escrita e chamei-lhe Canção de Vida, porque é um olhar para a vida, desde que nasce até quando morre. No momento em que ficou pronto telefonei ao Carlos, era a Maria Judite (a mulher) que atendia. Comecei a dizer bocados de letra por telefone, a ver se (Carlos do Carmo) gostava. Finalmente, combinámos eu ir à casa dele. Eu já tinha gravado uma maqueta no estúdio do Rui Veloso, comigo ao piano e a cantar. Levei-lhe a partitura, o CD e a letra, claro. Foi numa tarde, bebemos um chá. Logo nesse dia ou no dia a seguir, liga-me a dizer: ‘isto não é uma letra, isto é um poema’. Ele gostou imenso. Foi dando as voltas que achou por bem, foram voltas muito bem dadas. Adaptou à sua forma de interpretar e os músicos devem ter contribuído, porque o arranjo está muito bom”. 
Jorge Palma pensa incluir a Canção de Vida no seu reportório ao vivo.


 
O velho amigo Paulo de Carvalho
Paulo de Carvalho é o compositor de algumas das músicas mais importantes da carreira longa de Carlos do Carmo: 'Lisboa Menina e Moça', 'Os Putos', 'O Cacilheiro', ou 'O Homem das Castanhas' são só alguns exemplos. 
Nos últimos esforços artísticos de Carlos do Carmo, Paulo de Carvalho voltou a aparecer, tornando-se no único músico a ter duas composições musicais suas: 'Mariquinhas.Com' tem texto de Vasco Graça Moura e o tema 'Bem-Disposto? Então Vá!' parte de versos de Júlio Pomar.
"Neste último disco, encontrei-me com ele uma ou duas vezes. Houve ainda a possibilidade falarmos. Demonstrou-me que queria que fosse eu a fazer-lhe as músicas para estes dois poemas. Achava que eu era o compositor apropriado para estes dois poemas. Foi isso que tentei fazer. Penso que este Mariquinhas.com pode vir a ser um dos grandes sucessos deste disco. O texto é muito engraçado e acho que acertei na música própria para este texto".

 

Becas, o filho sempre ao lado do pai
Na estruturação dos álbuns, Carlos do Carmo foi tendo sempre o apoio na produção do seu filho Alfredo Almeida, mais conhecido como Becas. Neste disco derradeiro, pai e filho estiveram lado a lado na conceção. “Foi uma honra, como em todos os álbuns em que participei com o meu pai. Foi uma experiência musical, poética, como sempre foi, sempre que ia para estúdio com o meu pai. Ele era uma pessoa com uma intuição acima da média e era um prazer perceber o que é que ele tinha em mente e quais eram os objetivos que tinha em mente. Era fantástico tentar perceber isso e acompanhá-lo e ajudá-lo no que ele precisava”, confidencia-nos Becas, também conhecido no meio do fado como manager.
Há uma quebra física de Carlos do Carmo após os concertos de despedida nos coliseus de Lisboa e do Porto, em 2019, que é sentida por todos os que o rodeiam. Mas o fadista arranjou forças que parecia já não ter. Mas que teve. Mas o seu filho Becas não se surpreendeu. “O que ele tinha de extraordinário não era nada que eu não conhecesse dele: o seu poder de resiliência, a sua capacidade de trabalho e de intuição. Isso foi aguçado neste álbum pela sua debilidade física. Foi mais difícil que o normal. Todas as (suas) capacidades foram potenciadas mas nada me surpreendeu”.

 

Mário Pacheco, o outro aventureiro
A par de Jorge Palma, Mário Pacheco também se estreou a criar para Carlos do Carmo, precisamente no seu disco final, "E Ainda...". "Foi o resultado de muitas conversas que tivemos ao longo dos anos, especialmente os últimos. ‘Tem que fazer umas músicas para mim’. Este ano passado mandou-me dois poemas e disse-me que ‘gostaria muito de cantar estes poemas e que fosse o Mário a fazer’. Fiz duas músicas, de dois poemas de Sophia de Mello-Breyner Andersen, dos quais infelizmente só pôde gravar uma". O tema que ficou publicado intitula-se Canção 2. “Deixou-me muito contente. Carlos do Carmo é Carlos do Carmo”. Ele frequentava muito um clube de fados que abri há 25 anos e que vendi há dois", chamado precisamente Clube de Fado.  "Foi difícil, porque tive que entrar no poema e na forma de cantar do Carlos, que fosse adaptável e que fizesse sentido, com as palavras e a forma de cantar do Carlos do Carmo”, acrescenta.

 

José Manuel Neto, mais do que um guitarrista
O homem da guitarra portuguesa que acompanhou mais de vinte anos Carlos do Carmo, José Manuel Neto, assina as composições das faixas do álbum "E Ainda…": 'Fado Zé - Introdução' e 'Fado Zé - Fecho'. "O meu tema era para ser cantado e acabou por ser tocado, porque ele já não conseguiu gravar".

José Manuel Neto sentiu de perto o perfecionismo de Carlos do Carmo, que pensava cada frase que cantava, cada palavra, cada sílaba. Nesse cuidado extremo, viu-o também a deixar de lado algumas letras, uma delas que seria musicada por Neto. 

As forças maiores de Carlos do Carmo
Até ao fim e sem fim, Carlos do Carmo alongou até aos últimos dias e ao último disco a sua grandeza de cantor e de visionário. "Ele era um apaixonado pela poesia e pela música. Ele é que procurava o seu reportório na maioria dos discos. Tinha uma grande capacidade de trabalho. Acabava um disco, já estava a pensar no outro. Tinha muitas ideias, era muito criativo. Não parava. Eu pensava que aos setenta e tal anos fosse acalmar, mas não. Ele estava numa inquietação constante", diz-nos, impressionado, José Manuel Neto.
As qualidades maiores de Carlos do Carmo eram tão variadas que cada um admirava uma coisa diferente nele. "Trabalho com o Carlos desde 1977 e foi sempre fácil. O Carlos sabia muito bem o que queria. Teve a facilidade e o saber de juntar quem ele queria para fazerem o reportório para ele cantar. Ele sabia muito bem o que queria. A voz estava lá, a forma de cantar era aquela, que toda a gente conhece e que facilitava muito o trabalho dos autores. Fazer um fado para o Carlos equivalia a que o fado se tornasse muito conhecido, muito também pela forma de cantar do Carlos. Isso também era bom para nós, autores”, reconhece Paulo de Carvalho. Para Victorino D'Almeida, Carlos do Carmo "era uma pessoa de uma extrema exigência, o que eu acho muito bom quando a exigência começa em si próprio, como é o caso”.   
Além do amigo, Jorge Palma admirava também o cantor. "Ele era rigoroso sem ser preconceituoso. Foi abrindo espaço para assimilar outras formas sem ser o fado. Ele cantava Sinatra ou Jacques Brel, com um estilo inimitável”. Essa abertura era também sentida por Mário Pacheco, para quem Carlos do Carmo era "um inovador, além de ter sido um intérprete incrível com um timbre magnífico, único e referencial no fado. Mudou-se muita coisa na forma de tocar e de escolha de poetas e de compositores, porque ele esteve sempre rodeado do melhor". 
“O que mais admiro no meu pai e sempre admirarei é a sua capacidade de visão estratégica sobre aquilo que está a fazer e qual o impacto que vai ter daqui a uns anos nas outras gerações, nas suas ideias e na sua inovação”, completa Becas.

A edição do álbum "E Ainda..." vai merecer um segundo disco com o registo ao vivo do último concerto de Carlos do Carmo no Coliseu de Lisboa, em 2019.