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Trump: o Presidente (in)cessante

Donald Trump deixa oficialmente o cargo de Presidente no dia 20 de Janeiro mas promete não cessar a atividade pública.

Trump: o Presidente (in)cessante
ASSOCIATED PRESS

in·ces·san·te
adjectivo de dois géneros
1. Que não cessa, contínuo.
2. Assíduo.
3. Constante.
 
"incessante", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
 
Constante
 
Quando chegou ao poder, em 2017, uma das principais bandeiras de Donald Trump era ?levantar o muro? (Build the Wall). Referia-se a um muro para travar a imigração mas os muros foram muito além, no mandato de Trump. O presidente republicano levantou barreiras, até internamente, e deixa, agora, o legado de um país dividido com um grave conflito, de consequências imprevisíveis. Já este desfecho, era esperado. 
 
Trump nunca escondeu ao que vinha. Em campanha, em 2016,  e durante todo o mandato manteve a mesma postura de arrogância, egocentrismo, falta de empatia e desprezo pela verdade. Mas o que é geralmente visto como defeito pode ser, no caso da política, uma mais valia que levou Trump ao cargo mais alto da democracia norte-americana. Para os seus seguidores, a arrogância de Trump é astúcia, o egocentrismo é confiança, a falta de empatia não incomoda, porque é aplicada a ?quem merece? e a ?verdade? de Trump é a que vale.
 
Fiel aos princípios que defende, Trump insistiu no muro, alimentou a narrativa de ódio, semeou o ?medo do outro?, sem preocupação com factos, com a verdade ou com direitos humanos, foi motor de retrocessos e aprofundamento do racismo e descriminação na sociedade americana. Perante o choque com as mortes de George Floyd e outros afro-americanos às mãos da polícia, Trump mostrou indiferença e por vezes desrespeito. Quando a indignação chegou às ruas, o presidente classificou os ativistas do movimento Black Lives Matter como anarquistas, recusou-se a assumir a existência de erros e de um problema para resolver.
 
A animosidade não se fica pelos afro-americanos. Trump foi insultuoso também com hispânicos, muçulmanos, judeus, mulheres, veteranos, heróis de guerra e pessoas com deficiência. 
 
 
Assíduo
 
Ao longo dos quatros anos de mandato presidencial, Trump revelou, em muitos momentos, a impreparação para o cargo, que lhe foi sempre apontada pelos críticos. No entanto, as gaffes nunca o atrapalharam no percurso que definiu e seguiu, em modo ?bulldozer?, para garantir o cumprimento da sua agenda ?custe a quem custar?. E custou a muitos. Alguns exemplos são: as famílias em busca de vidas melhores que acabaram separadas nas fronteiras, com crianças presas em jaulas; os 700 000 imigrantes que chegaram aos EUA em criança (Dreamers) e que viram piorar as condições do programa que lhes permite a legalização no país onde vivem há décadas (DACA); a classe média que teve que suportar os resultados da reforma fiscal de Trump que só deixou mais ricos os que já eram ricos; os doentes que sofreram com a resposta tardia e desajustada à pandemia, que contribuiu para que EUA sejam o país mais afetado pela Covid-19, em número de casos e mortes.
 
No panorama internacional, Donald Trump custou aos EUA credibilidade. Em muitos países europeus, a percentagem de pessoas com uma visão positiva dos EUA está hoje no nível mais baixo em quase 20 anos, muito por causa da resposta à pandemia.
 
Em 2018, o Presidente foi ?brindado? com gargalhadas durante um discurso na assembleia-geral das Nações Unidas quando disse ??Em menos de dois anos, a minha administração conseguiu mais do que qualquer outra administração na história do nosso país.? Os delegados na sala não contiveram o riso e Trump admitiu que ?não esperava? essa reação ?mas não faz mal?. E prosseguiu o discurso.

 

 

Durante os quatro anos de mandato, Trump foi incansável nos ataques à China e piorou - muito - a já difícil relação EUA-China. A administração Trump considerou ilegais as reivindicações territoriais no Mar da China Meridional; implementou tarifas sobre os produtos chineses; proibiu downloads dos aplicativos TikTok e WeChat e impôs sanções à gigante das telecomunicações chinesa Huawei, que os EUA dizem ser uma ameaça à segurança nacional. Com uma guerra comercial em curso, quando finalmente admitiu a existência da pandemia, Trump insistiu em chamar o coronavírus de ?vírus chinês?, em mais um momento de racismo declarado.
 
 
Que não cessa, contínuo
 
Donald Trump tem conseguido vários momentos inéditos e algumas estreias mas, na verdade, poucas surpresas. Só se deixou surpreender quem achou que um candidato que se disse sempre ?fora do sistema?, ia passar a seguir as regras depois de tomar posse. A Casa Branca não mudou Donald Trump, Donald Trump mudou a Casa Branca, para servir a sua agenda. Transformou a filha e o genro em assessores, apesar da ausência de currículo para exercer as funções. Demitiu membros da equipa e do governo sem contemplações, sempre que se opuseram aos seus objetivos. Aliás, o seu grupo de fiéis foi difícil de acompanhar, tendo em conta a frequência de entradas e saídas. A maioria envolta em polémicas, algumas graves. Nenhuma que tenha conseguido retirar Trump da presidência.
 
O mais perto que esteve do afastamento foi durante o impeachment em 2019, por causa de uma conversa telefónica em que pressionou o presidente ucraniano a investigar o filho de Joe Biden, numa tentativa de interferir na campanha eleitoral. O impeachment  foi aprovado na Câmara dos Representantes, mas chumbado no Senado, sem ter chegado a tirar o sono a Trump.
 
O episódio reforçou a confiança do Presidente republicano que, ainda assim, percebeu que a reeleição estava em risco e optou pela velha estratégia das fake news.
 
O The Washington Post contabilizou as afirmações falsas de Trump durante o mandato, até agosto: em 1316 dias o presidente fez 22 247 declarações falsas ou enganosas. Seguiu-se a campanha e a derrota e este número não tem parado de aumentar.
 
Ainda durante a campanha eleitoral Donald Trump lançou a desconfiança no processo de votação, e desde o dia das eleições alega que houve fraude. Recusou-se a admitir a derrota, avançou para tribunais e ameaçou a transição de poder, sem que nunca tenha havido indícios reais de irregularidades no processo eleitoral.
 
Sem conseguir o objectivo de se manter no poder, horas antes da sessão do Congresso onde seriam certificados os resultados das eleições, Trump insistiu na narrativa de "eleições roubadas" e afirmou no comício ?Stop the Steal? (Parem o Roubo), no parque Elipse na Casa Branca, que ?se não se lutar com tudo o que se tem, deixaremos de ter um país?. Pouco depois, centenas de apoiantes do republicano dirigiram-se para o Capitólio, para uma invasão que causou 5 mortos, entre eles um polícia. 

 

 


 
Quando o ataque estava a decorrer, Trump usou o Twitter para criticar o vice-Presidente Mike Pence, que rejeitou a possibilidade de anular unilateralmente os resultados das eleições.
 
?Mike Pence não teve coragem para fazer o que devia ter sido feito para proteger o nosso país e a nossa constituição, dando aos estados a oportunidade de corrigir vários factos, e não os fraudulentos que agora pedem que eles certifiquem. Os EUA exigem a verdade?, escreveu Donald Trump no Twitter. A mensagem foi só mais uma num conjunto de publicações que incentivaram a violência a que o mundo assistiu, incrédulo.

Dois dias depois do ataque, mais de 60 dias depois das eleições, Donald Trump assumiu finalmente a derrota nas eleições presidenciais de Novembro de 2020, num vídeo que gravou a conselho dos assessores e em que, numa mudança de tom, se diz ?indignado com a violência, a ilegalidade e o caos?. 

O presidente cessante dos Estados Unidos afirma na gravação que ?A América é e deve ser sempre uma nação de lei e ordem. Os manifestantes que invadiram o Capitólio contaminaram a sede da democracia americana?.

Trump dirige-se diretamente aos manifestantes que participaram na invasão ao Capitólio, para lhes dizer que ?não representam o país? e que ?se infringiram a lei, vão pagar?.

Apesar de continuar a criticar as eleições, sugerindo até uma reforma das leis eleitorais, Donald Trump assume que o Congresso certificou os resultados e que, por isso, está agora ?focado em assegurar uma transição estável e ordeira de poder?: ?Este momento pede reconciliação?. Anunciou depois que não vai estar na tomada de posse de Joe Biden. Será a primeira vez em 150 anos que um Presidente cessante não participa na cerimónia de transição de poder.

A ?saída de cena? de Trump não está certamente para breve. Depois do ataque ao Capitólio há consequências a que não deve escapar. Em cima da mesa estão a possibilidade de impeachment - o que impediria uma recandidatura de Trump - e há congressistas que já pediram ao vice-presidente Mike Pence para que seja invocada a 25ª emenda da Constituição norte-americana, que permite retirar Trump imediatamente do poder. As várias opções têm dificuldades de concretização mas Democratas e um Republicano estão determinados em não deixar passar sem resposta o ataque à casa da Democracia. 

Apesar da perda de credibilidade acentuada pelos acontecimentos pós-eleições, o Presidente cessante promete não cessar. Trump admite sair agora da Casa Branca, para voltar daqui a quatro anos e, no entretanto, também não quer estar calado. O desrespeito pelas políticas de utilização das redes sociais já lhe valeu suspensões e o afastamento permanente do Twitter, por incitamento à violência. Em resposta, Trump promete criar uma rede própria para falar ?sem filtros? e é certo que há quem o queira ouvir. Os comentários nas redes sociais mostram que os apoiantes do republicano estão mobilizados e focam agora atenções no dia da tomada de posse do novo Presidente dos EUA, com muitas ameaças. O efeito Trump mantém-se, até ver, contínuo.