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Bruce Springsteen: réquiem & roll

Morreu o amigo George e Bruce lembra-o, no novo álbum "Letter To You", onde a E Street Band se faz ouvir.

Bruce Springsteen: réquiem & roll
Danny Clich

O novo álbum de Bruce Springsteen, “Letter To You”, é o estádio final de um encadeamento de reflexões sobre a sua longa vida de rock & roller. Em 2016, publicou o livro autobiográfico "Born To Run", onde passa em revista toda a sua vida, do berço aos bares, das grandes arenas às depressões. Entre 2017 e 2018, Bruce Springsteen assume um espetáculo a solo, "Springsteen on Broadway", em que intercala canções com histórias sobre a sua vida, como se fosse uma transposição para palco do seu livro autobiográfico "Born To Run". No verão de 2018, a morte do guitarrista e amigo George Theiss faz de Bruce Springsteen o último membro vivo da sua primeira banda de sempre, os Castiles (ativos na segunda metade dos anos 60).  
 
Esta sensação estranha de Springsteen ser o último sobrevivente da banda da sua adolescência foi o empurrão para este novo álbum “Letter To You” - tal como diz em entrevista por Zoom onde estivemos presentes e que podem ler neste link. Este disco de 12 faixas é uma viagem mental a toda a sua carreira de 50 anos. Dito de outra forma, “Letter To You” é como se a autobiografia "Born To Run" tomasse forma em novas canções, naquela ambiguidade poética avivada por melodias, pelo ritmo, pela voz rouca de Bruce Springsteen e por aquele frenesim sonoro da E Street Band. 
     
“Letter To You” tem como tema "a música em si mesma" e a vida de rock & roll. Sendo um disco de Bruce Springsteen e da E Street Band, a banda toma o corpo instrumental do álbum (normal) e desta vez das letras (inédito). A banda é o tema do álbum. Bruce faz-lhes um tributo na mesma sala que eles, à frente deles e, sobretudo, com eles.  
 
Estão lá as memórias dos Castiles, dos Steel Mill e dos 45 anos da E Street Band. Dos que estão e dos que já não estão. Típico de um músico de outra escala, Springsteen gravou estas canções sobre 50 anos de carreira em menos de cinco dias. Ele é também o patrão do tempo. 
 
'Last Man Standing' foi o desbloqueio para a vaga rápida de novas canções, mas na ordem do disco é 'One Minute You're Here' que aparece primeiro, ainda por cima um enclave intimista, como se Bruce Springsteen ainda estivesse a gravar o muito pessoal "Nebraska" (de 1982). Esta balada é o bem-vindo paradoxo de um álbum autenticamente de banda. Mas a ideia do que é ser um músico rock & roll já vinga logo nesta faixa de abertura, num fado de homem da estrada que sempre de fugida não esquece a amada. "One minute you're here/Next minute you're gone", vai cantando, numa folk atmosférica, cinematicamente sublinhada por sintetizadores. 
 
Da amada passa-se para a armada, a também amada E Street Band, que instala o estaminé quase todo no tema-título "Letter To You", de roda do camarada Bruce. O Boss comanda empolgado uma combinação tão ao seu estilo de guitarras, órgão e piano, já com o baterista Max Weinberg bem audível. Bruce Springsteen enfiou todos os sentimentos (a alegria e a dor) e descrições (a noite estrelada e o dia soalheiro de céu azul) que tinha numa carta manuseada, mas que é pautada em coletivo por Bruce Springsteen e pela E Street Band. A carta é para alguém, mas a cartada de Bruce é a sua banda. 
 
A otimista Burnin' Train é nova faixa de rodagem para a E Street Band alavancar o mundo, mas Bruce Springsteen volta a ver duas linhas de ferro na sua metáfora desta longa vida. O comboio fumega de paixão e prossegue o seu caminho, porque Bruce não sabe parar. A estação é só um intervalo. 
 
O já referido 'Last Man Standing' é um tema tão central que Bruce Springsteen colocou-o mesmo a meio do disco. Nele transplanta para versos um roteiro de salas e salões onde tocou com os Castiles e os Steel Mill, como se estivesse a cantar os capítulos 13, 14, 15, 16, 17 e 18 da sua autobiografia “Born to Run”... mas agora com uma adenda que faz toda a diferença: a frase do refrão “I'm the last man standing now”. George Theiss já não está entre nós, já só sobra Bruce. 
 
O poder da fé de Bruce Sringsteen expande-se a toda a banda no apianado 'The Power Of Prayer', onde o saxofone de Jake Clemmons (o sobrinho do mítico Clarence) toma conta da canção por mais do que uma vez. Roy Bittan continua a espalhar os dedos e magia pelas teclas do piano em 'House of a Thousand Guitars', uma das canções mais carismáticas do disco, onde Bruce Springsteen recorda os sábados à noite, o momento religioso semanal do músico entertainer, que faz do palco o seu altar. Springsteen quando chegou aos estádios continuou a ser o músico de bar, o espírito é o mesmo, e é mais ou menos sobre isso que canta. 
 
'Ghosts' é outra canção forte de “Letter To You”, tem a imponência grandiosa da E Street Band, num crescendo até ao fôlego épico e final de la la la's. 'Ghosts' é uma convocatória de todos os espíritos que tocaram com Bruce Springsteen desde 1965 até hoje. Os instrumentos merecem uma descrição tão exaustiva na letra que entramos nos camarins e subimos aos palcos dos bares onde o Boss tocou há muito. Não são apenas as almas dos malogrados George Theiss, de Danny Federici (o espontâneo das teclas) e Clarence Clemons (o super-saxofonista) a flutuar em 'Ghosts'. Os espíritos dos fãs vivos também são chamados para a imensa roda dos músicos antes do espectáculo das dez da noite.  
 
Há algumas exceções ao conceito temático da vida de rocker em "Letter To You", como na nuvem mais negra de pessimismo 'Rainmaker', sobre outro assunto caro ao músico, a seca e o sol devorador de qualquer fertilidade dos campos e de crença. Até mesmo Bruce Springsteen canta um verso tão forte quando este: "Sometimes folks need to believe in something so bad". Seria de esperar uma reza no final, ou algo mais esperançoso para fazer cair a tal chuva mas quem aparece são os abutres desumanos com os seus educados apertos de mão. Sem optimismo, este é decididamente um tema mais atípico de Springsteen.  
 
No fecho, Bruce Springsteen canta o réquiem de George Theiss, 'I'll See You In My Dreams', mas mesmo na despedida, já descortina no horizonte um futuro, onde os dois se rirão novamente.  
 
Feito de sangue, suor e lágrimas... e memórias, “Letter to You” é a espiritualização do rock por quem o conhece na palma da mão. O seu réquiem é um elogio luminoso à vida, um sequenciamento a quem já cá não está - George Theiss, Danny Federici, Clarence Clemmons, por aí fora. Com Bruce Springsteen, até os mortos estão vivos.