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Sai hoje o livro de fotografias de António Variações

Entrevista à autora Teresa Couto Pinto, a agente pessoal e fotógrafa do cantor.

Sai hoje o livro de fotografias de António Variações
Teresa Couto Pinto (imagem de capa da fotobiografia "António Variações" - cortesia Oficina do Livro)

António Variações não era apenas, para Teresa Couto Pinto, o seu cabeleireiro e o seu retratado. António Variações foi o cantor a quem Teresa Couto Pinto se entregou de alma e coração, como sua agente pessoal e fotógrafa, durante o percurso meteórico do artista entre 1981 e 1984.

O conjunto de fotos de Teresa Couto Pinto tiradas a Variações ganha agora a forma de livro fotobiográfico, "António Variações", que conta com prefácio de Manuela Gonzaga - a biógrafa do cantor minhoto no livro "Entre Braga e Nova Iorque".

36 anos após a morte de António Variações, é agora a vez de vir a público o testemunho de uma das pessoas que o conheceu melhor, Teresa Couto Pinto, através de mais um objeto que o eterniza: a máquina fotográfica.

Fomos tentar conhecer ainda melhor o retratado António Variações por quem o tanto retratou, Teresa Couto Pinto. "António Variações" é também um álbum de recordações de um tempo feliz e de uma amizade entre o homem à frente da objetiva e a mulher atrás dela. Para a posteridade.
 
Queria pedir-lhe, pela voz da autora, para explicar como é o livro de fotografia "António Variações"? 
O livro é um conjunto de fotos que tirei durante dois anos e meio, do tempo em que trabalhei com ele. Algumas, esporádicas, eram anteriores. Nesses dois anos e meio, que foi aquela carreira meteórica que terminou cedo, reuni este espólio que tinha e resolvi colocá-lo no livro, para o homenagear porque já andava há muito tempo atrás por quem me patrocinasse o livro. Finalmente, aconteceu. Este livro está feito como se fosse um disco LP. Eu não tinha como arrumar cronologicamente as fotos, então resolvi arrumá-las por temas. Cada tema tem um título como se fosse uma canção do LP. Arrumei da melhor maneira que achei, começando com ele a maquilhar-se. Por acaso, é uma das fotos finais em termos cronológicos, porque foi de preparação para o disco "Dar & Receber" [o segundo e derradeiro álbum de estúdio de António Variações]. Começa aí, como se ele estivesse a preparar-se para palco e a fazer ensaios. E depois continuo por temas, com o cabeleireiro, a casa, o esteta, o amigo. Arrumei-o conforme achei que as fotografias poderiam encaixar, em cada assunto. O livro é também a minha experiência pessoal, na primeira pessoa.  


 
Ao fim de mais de 36 anos, a Teresa só agora publica este livro. Chegou a pensar guardar as fotos inéditas para si mesma? 
Não. Tenho algumas que não torno públicas porque são muito intimistas mas a maior parte pode ser vista por toda a gente e nunca pensei guardar para mim porque acho que o António merecia esta homenagem. Tenho preservado estas fotos trinta e tal anos, com mudanças de casa e de vida. Tenho-as preservado da melhor maneira e foram digitalizadas quando saiu o livro da Manuela [Gonzaga, "Entre Braga e Nova Iorque"]. Mantive sempre preservadas porque tive sempre imensas ofertas, para ceder as fotos, para as vender. E eu sempre disse que não porque sabia que a partir do momento que as vendesse, deixava de poder ter controlo sobre elas. Já bem basta terem usado as minhas fotos na internet sem me pedirem licença e sem sequer identificar os créditos. 
 
Mas desejava ter publicado este livro há mais tempo ou esta é altura certa? 
É a altura ideal. Se tivesse sido há mais tempo, era eu própria que não estava preparada para lançar este livro e o público português também não estaria preparado. Acho que durante muitos anos se focaram muito na morte do António, nunca ninguém se preocupou muito quem ele era ao vivo, quem era a pessoa por trás do sucesso meteórico. Acho que isso foi explorado até à exaustão e as pessoas já estão mais tranquilas em relação a esse aspeto da vida do António. Agora já se pode falar dele, como é que ele era, como é que estava perante a vida, como é que era como pessoa. E disso só pode falar quem conviveu com ele. Podem especular, podem caricaturar, só quem conviveu com ele sabe quem ele era por trás do cantor e do personagem Variações que encarnava. Havia o António Joaquim Rodrigues Ribeiro e o António Variações.   

 


O António era descrito como uma pessoa que separava as várias áreas da sua vida em diferentes gavetas: a vida de barbeiro, a vida mais íntima, a vida de músico, a família do Minho, o lado mais boémio. A Teresa era das poucas pessoas que tinha acesso a mais do que uma gaveta da vida do Variações? 
Conheci várias gavetas, sim. Não tive acesso à família porque ele não misturava água e azeite. Sabia que era impossível não misturar. Mesmo ele, quando ia à terra, ia mais comedido. Penso que a mãe o aceitava como ele era e o criticava nalgumas coisas: “ficas tão mal com essa barba, devias cortá-la”. Em Lisboa, permitia-se viver os anos 80 como nós todos vivemos, com a felicidade pela nova experiência de liberdade e tudo isso era muito importante para ele.    
 
Qual é a ideia mais errada do Variações que vê repetidamente retratada sobre ele? 
O António sempre foi muito masculino, dentro da sua opção de vida, bissexual. Apesar de usar brincos, nunca eram do tipo candelabro, nem brincos iguais, nem se vestia como drag queen. Ele não era nada disso, como eu acho que foi retratado no filme sobre ele agora [“Variações”]. Era muito sóbrio. Claro que vestia umas calças aos quadrados amarelos e verdes com uma camisola tricotada em fio de cabedal, com botas da tropa, ou com camisas com dois lenços por baixo de um casaco de tropa. Mas nada de ligas, nem dessas coisas. Era muito masculino e não gostava dos chamados bichas, achava-os muito afeminados. O único que ele respeitava e achava piada era o Rudolfo, que também aparece neste livro e que tinha um percurso muito independente. 


 
Quando conheceu o António em 1976, o impacto visual foi imediato? 
Claro, o António fazia virar cabeças, pelo simples motivo que usava as roupas que usava com muita confiança. Impunha-se, tinha um carisma muito especial e muito dele, que era inimitável. Projetava aquela imagem para o posterior, e era de uma afabilidade e simpatia. As pessoas acabavam por demorar o olhar nele. Também se metiam com ele, mas o António tinha sempre uma resposta muito positiva aos piropos, às bocas que ouvia na rua. Ele era muito confiante, tinha muita auto-estima.     
 
As reações das pessoas mudaram muito antes e depois do António ser Variações? 
Foi sequencial. Quando apareceu na televisão pela primeira vez, já descia o Chiado com um papagaio no ombro, vestido de colonialista. Quando foi à televisão, atingiu outra camada dos portugueses, porque foi visto por milhares de pessoas. No dia seguinte [a primeira aparição na TV, no programa de Júlio Isidro a cantar 'Toma O Comprimido', em 1981], o impacto foi bastante grande. Uns diziam mal, outros diziam bem, mas não se falava de outra coisa em Lisboa inteira. As pessoas nos cafés perguntavam: "viste aquilo ontem no Júlio Isidro?". Acho que essa reação das pessoas não foi de choque, foi positiva. Foi falado, nunca causou indiferença. Para mim, foi um seguimento lógico, nunca o vi muito diferente. Mas frequentávamos locais onde as pessoas eram diferentes, o António não era o único. O Chiado estava cheio de pessoas diferentes, era uma zona de criativos em crescimento. Havia muitos músicos a passear e características específicas nas pessoas e a dele era essa: vestia de forma diferente dos outros. Provocava impacto com a barba, era um ser bonito. Apesar de não ter sido alto, tinha uma estrutura física bastante agradável e fantástica, porque ele fazia ginástica. E tinha aquele olhar e riso doces que cativavam as pessoas.      
 
As fotografias do Variações eram um processo criativo a dois, ou alguém dava mais ideias que outra pessoa? 
Umas vezes dava eu, outras vezes dava ele. Ele gostava de ser fotografado porque ele gostava de saber o que as pessoas viam. Ao espelho, vemos uma imagem diferente que o nosso cérebro processa. Ele queria ter a perceção do terceiro olhar e isso só a fotografia lhe dá. Não é o reflexo de um espelho mas é como uma terceira pessoa o vê. Quando ele olha para uma fotografia, é como se fosse de uma pessoa de fora, aquilo que os outros vêem. Isso era muito importante para ele. Havia muitas sessões que eram feitas tão somente para ver coordenadas de roupa, escolher peças para espetáculos, como um trabalho de pesquisa. A ideia das tesouras surgiu quando ele me estava a cortar o cabelo e eu falei-lhe das tesouradas A e V e ele gostou imenso da ideia. Para o distanciar de outros cantores que havia na altura, criámos essa sessão fotográfica que está no livro. Fomos para casa tentar pôr a tesoura na cara e é daí que ele tem aquela fotografia icónica com ele apunhalar-se com a tesoura. Havia sempre um trabalho conjunto.  


 
Havia uma tendência dele para uma imagem mais veraneante? 
Não, dependia. Em casa, era com os fatos que tinha, não estava frio. Tenho poucas fotografias dele na rua, só algumas de alguns passeios que fizemos aos fins-de-semana, quando tínhamos tempo. Muito raramente os nossos horários coincidiam. Ele tinha uma vida muito ocupada. Quando ele estava fora, eu ficava a atender chamadas no cabeleireiro. Eu era mãe e tinha as minhas obrigações familiares também.   
 
Acompanhou o processo do filme sobre o “Variações”?  
Não. 
 
Foi consultada? 
O [realizador] João Maia apresentou-me o guião há dez anos, antes de fazer o filme. Eu li-o e disse-lhe que [o guião] não tinha nada a ver com o António. A partir daí, nunca mais me perguntou nada. Nem me consultou. Nem à Manuela Gonzaga, que é uma peça fundamental, foi a pessoa que "desbravou a vida do António do berço à tumba" como ela costuma dizer. Ela entrevistou toda a gente, tem um trabalho muito rigoroso na biografia do António, como historiadora que é. 
 
Não me lembro de ver a personagem da Teresa no filme. 
Acho que o João Maia não gostou do meu comentário, mas ele pediu-me a opinião e eu sou sincera. Não vi o filme, nem pretendo ver, porque conheci o original. Já toda a gente me disse: "não vás que ficas irritada". Segundo me contaram, é uma caricatura bastante deselegante do António. O António não era aquele tipo de pessoa, não andava à pancada, jamais admitira devassa porque era uma pessoa extremamente educada e extremamente delicado com as pessoas. Não ofendia, não insultava, não provocava as pessoas de forma desagradável. A provocação não era de atitude mas de comportamento individual. Ali [no filme], não se respeita a imagem do António, nem o seu carisma. Podiam ter consultado nas roupas, mas não. Não se basearam sequer nas fotos para o vestir. Exageraram a coisa como se fosse uma drag queen. 
  
Quando é que sentiu que o António não estava bem? 
Ele começou a ficar bastante cansado, mas pensámos que era por estar cheio de concertos para cima e para baixo. Poderia ser um cansaço físico natural. Mas depois começou a aparecer uma mancha, uma coisita na testa, que não sabia o que era. Foi gradual. Foi lá abaixo à casa da minha irmã, porque íamos gravar um programa a Faro ou à Quarteira, e ele acabou por não ir [ao programa], porque ficou cheio de febre e tivemos que ir para Lisboa. A febre não baixava na primeira vez em que foi internado. Foi uma coisa relativamente lenta. Ele tinha perdido um bocado de peso mas atribuíamos isso ao cansaço. Tinha concertos constantemente, então no verão, quando faleceu, tinha cento e tal concertos marcados.    


 
Faz sentido defender-se que ele não morreu de sida? 
Não. Isso foi mais fabricado pela família. As pessoas não morrem de sida, morrem de consequências de sida, porque é uma doença auto-imune. O organismo deixa de ter resistência para lutar contra influências exteriores. Ele não morreu de sida, morreu de uma pneumonia bilateral, mas derivado ao facto de não ter defesas no organismo. Era seropositivo. A doença ainda era desconhecida em Portugal. Só tinha havido um caso com um cabo-verdiano ou angolano. Lá fora já havia muito. Antes de morrer no hospital, disse à Matilde: "acho que o médico se enganou com a minha doença, devo estar com a maldita". Ele viajava muito, não é. A última viagem que fez foi a Nova Iorque, foi três anos antes que a coisa pode ter acontecido aí.      
 
Tendo estado tão próxima de alguém tão especial como o António, a presença forte destes últimos 36 anos da sua vida é a sua ausência? 
Claro, eu penso no António todos os dias, como penso noutros amigos que desapareceram. Claro que o António é uma presença constante. Tenho a minha casa com fotografias do António por todo o lado, como tenho fotografias de família. Ele fez parte do meu universo familiar. Foi uma presença constante, conheceu a minha filha e o meu filho, ia a minha casa. Foi um dos amigos que considero a minha gente. 

Qual era a característica do António que fazia dele uma pessoa tão especial?
A verdade, a honestidade dele. O António era uma pessoa muito protetora no bom sentido. Aconselhava, não andava sempre em cima. Bastava uma frase que ele lançava no ar em que ficávamos a refletir. Ele foi também muito protetor em relação ao Rudolfo, que muito jovem já estava agarrado ao álcool. Ele não tinha nada desses vícios, não bebia, não fumava, não se drogava. Aquilo era saúde, saúde, ginásio, sumos naturais, mesmo à noite raramente o vi de copo na mão. E se bebia, era sumo de laranja. Nunca o vi com os copos. Ele detestava que eu fumasse. Tenho uma fotografia em que ele está com um cigarro na mão, mas é o meu cigarro quando eu estava a fumar. [E António disse] "Dá cá essa porcaria". Nunca fumou e detestava o fumo. Estava sempre a ralhar: "isso com as crianças não é bom". Deixei de fumar há muitos anos, mas na altura ainda fumava.  


Imagens cedidas pela Oficina do Livro.