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Manuela Azevedo: "a palavra sempre foi muito importante" nos Clã

Entrevista a propósito do novo álbum "Véspera", onde se estreia a colaboração de Capicua nas letras.

Manuela Azevedo: "a palavra sempre foi muito importante" nos Clã
João Octávio Peixoto

O novo álbum dos Clã, "Véspera", foi lançado no final de maio e é mais um sinal do desconfinamento mental neste cenário pandémico que paralisou a nossa sociedade. 

A equipa de sonho de letristas dos Clã - Sérgio Godinho, Carlo Tê, Samuel Úria, Regina Guimarães (umbilicalmente ligada aos Três Tristes Tigres), o brasileiro Arnaldo Antunes e, pela primeira vez, a amiga pessoal Aurora Robalinho - tem como reforço de peso neste álbum a rapper Capicua, que aplicou o seu imenso talento de escriba em duas canções da banda nortenha.

"Véspera" tem ainda outra novidade, que é substancial: a estreia de dois novos membros no sexteto, o baterista Pedro Oliveira e o baixista Pedro Santos. A primeira alteração de sempre do grupo vinca ainda mais a orgânica forte dos Clã, nestas dez canções.

Agora, passemos a palavra à entrevistada, a cantora da banda, Manuela Azevedo. 
 
O lançamento do álbum "Véspera" é apanhado em cheio por esta pandemia. Há alguma coisa de bom que se pode tirar desta coincidência temporal?
(Risos) É sempre importante encontrarmos coisas positivas, mesmo nos piores cenários. Mas à partida não estou a ver que tenha havido alguma vantagem. O que nos apercebemos foi de uma coincidência temporal demasiado assustadora e quase literal entre alguns temas e o que vivemos com esta pandemia. O que aconteceu é que ficámos na dúvida, com esta suspensão de tudo causada pela pandemia, a necessidade de confinamento e uma série de medidas que foram tomadas no nosso país e no mundo inteiro. A primeira sensação foi a de pararmos para pensarmos em coisas mais importantes e se fazia sentido estarmos a lançar um disco nesta altura. Durante o primeiro mês, também nós ficámos suspensos e sem energia para pensar no que fazer. 
[Depois] Começámos a pensar no que tínhamos que fazer, como é que seria continuar o contacto com quem acompanha o nosso trabalho e estar a fazer esse contacto usando músicas que já existiam, tendo nós um grupo de canções novas que gostaríamos muito de poder partilhar, decidimos que íamos lançar o disco e arranjar maneira de comunicar este novo trabalho, nem que fosse virtualmente com quem estivesse interessado em descobrir esta nova fase dos Clã. Foi isso que nos ajudou a fixar uma data para o lançamento, a 22 de maio. Houve outras coisas que fomos fazendo, como o videoclipe de 'Armário' com muitas reuniões no Zoom. Foi isso que nos levou a fazer aquela mini-série de vídeos do "Véspera" em casa, para matarmos saudades de tocarmos uns com os outros, cada um no seu canto.
 


 
Esta "Véspera" do título é véspera do quê?
Quando andámos à procura de um título no final do ano passado, quando já tínhamos encontrado o corpo de canções e uma ideia do ambiente e de todas as letras que iriam fazer parte do disco, queríamos uma palavra que passasse a sensação e a dimensão sónica que as músicas tinham. Apesar de ter músicas bastantes físicas e rítmicas, há uma sombra negra, uma pequena ameaça, por algum instrumento, por alguma linha e por algum riff que ensombram as canções também. Essa sensação já vínhamos sentindo nos últimos anos que tem que ver com o mundo à nossa volta que tem involuido, a andar para trás, a ver certas ameaças ao planeta que dificilmente terão remédio, vemos ideias muito perigosas que já julgávamos enterradas e que voltam a ressuscitar. Essa sensação de que vivemos tempos de algum perigo, de uma espécie de ameaça latente e silenciosa que está sobre os teus ombros, é uma sensação que nos aflige enquanto pessoas e cidadãos e acho que acabou por contaminar o que fomos fazendo. A par dessa ameaça, há a necessidade de acreditar que as coisas valem a pena e de pensar que quando essa ameaça se concretizar, como vais responder a ela. Essa sensação de estares antes de um acontecimento importante era a ideia que queríamos veicular para o título.     


 
Como é habitual, contam com um conjunto de letristas de primeira. E agora têm a escrever para vocês a Capicua. O que é vos atraiu nela?
A Capicua é uma artesã da palavra exímia. Já admirávamos há algum tempo a forma como escreve e trabalha a língua portuguesa, no seu trabalho como MC nos seus discos, mas também noutras vertentes como o projecto Mão Verde, que é maravilhoso e muito bem escrito para os mais novos, mas também quando se desdobra a escrever para outros parceiros. Neste disco, havia uma canção que parecia ter a cara dela em termos sónicos e rítmicos. Achámos que podia ser um encontro interessante entre os universos da Capicua e dos Clã. Então, lançámos-lhe o desafio, especificamente para a canção que se tornaria o 'Armário'. Ela veio cá a casa ouvir as maquetas que tínhamos, como é que o disco se estava desenhar. Gostou bastante de tudo e aceitou o desafio. Correu muito bem, o 'Armário' ficou logo muito fixe e como queríamos. Então, decidimos desafia-la a escrever outra letra para o disco, aí já enviando uma música fora do seu território mais previsível, mais espacial, com um ambiente um bocadinho diferente, mas que resultou numa canção maravilhosa, que é das minhas favoritas do disco, que é o 'Tempo-Espaço'.         
 


 
Quem é a Aurora Robalinho?
Também é a primeira vez que escreve para os Clã e na verdade é a primeira vez que escreve uma letra de canção. É uma amiga da banda, uma pessoa muito próxima que conhece bem o nosso trabalho e as nossas maquetas. Está bastante próxima. E um dia surpreendeu-nos com essa letra (da música 'Na Sombra'). Não só conhece bem as maquetas, como tem uma belíssima memória musical. Então, ela ia um bocado assombrada para esta canção durante uma viagem que fez, julgo que de metro, e saiu-lhe esta letra que nos mostrou: mais naquela "vejam só o que eu decidi escrever sobre isto". Gostámos bastante da letra que acabou por encaixar belissimamente. Foi uma surpresa, não estávamos nada a contar que a Aurora se tornasse uma das letristas.  
 
Que consequências sonoras teve no disco a recente reformulação da banda?
Nós fomos surpreendidos no ano passado com a decisão do nosso antigo baixista [Pedro Rito] e do nosso antigo baterista [Fernando Gonçalves] que, por motivos vários, estavam ocupados com outras coisas na sua vida. E como estávamos na eminência de gravar o próximo disco, eles perceberam que não iam ter essa disponibilidade de se poderem entregar aos Clã como deve ser e como sabem fazer. Na altura fomos à procura de dois substitutos para dois concertos que tínhamos marcado e que tínhamos mesmo que cumprir. Foi mais uma coisa de urgência. Tivemos a grande sorte de acertar à primeira, com dois músicos muito bons: o Pedro Oliveira na bateria e o Pedro Santos que veio ocupar o lugar do nosso baixista. São muito trabalhadores, tiveram que aprender em tempo recorde uma data de canções dos Clã para poderem subir a palco connosco para esses dois espectáculos, no Douro Rock e na Festa do Avante!, ainda por cima em palcos que não são propriamente pequeninos e discretos. Gostámos muito da forma como eles trabalhavam e reagiam às nossas canções. Nesses dois concertos, experimentámos logo tocar canções novas e eles assimilaram-nas muito bem. Houve um encontro muito feliz de espíritos entre nós os quatro e estes novos elementos. Logo depois do primeiro concerto, perguntámos-lhes se queriam fazer parte da banda e se queriam gravar connosco o novo disco, encarando esta nova aventura como elementos dos Clã. Felizmente, eles aceitaram. Depois, o trabalho em estúdio foi bastante tranquilo e não houve aquela coisa que temíamos um pouco: é de imaginar que dois novos membros num coletivo que existe há mais de vinte anos pudessem atrapalhar mas isso não aconteceu de todo. Ao mesmo tempo, trabalhar com pessoas diferentes torna-te mais atento, tentas comunicar melhor e ficas mais ágil. Escutas melhor e tentas ser mais claro na forma como trabalhas. Acho que isso ajudou que o trabalho fluísse ainda melhor. Neste momento, parece que eles fazem parte da banda há muito tempo. O facto de eles terem trazido muito entusiasmo para esta nova aventura trouxe uma energia suplementar a todo o trabalho. Foi muito útil para que tudo corresse bem com bom espírito. 


 
Quando apareceram a meio dos anos 90, criou-se a moda de se cantar em inglês na música portuguesa, mas vocês sempre usaram a nossa língua. Alguma vez estiveram próximos de ceder a essa tentação?
Nós não cantamos em português por uma questão de militância, é mesmo porque é o que faz sentido. De outra maneira, seria muito estranho. Para nós, a escrita e a palavra sempre foram muito importantes. Que as letras sejam boas, que digam coisas que nos interessam e que nós achamos que vão interessar às pessoas. Para haver uma identificação profunda com o que estás a dizer, tens que escrever numa língua que dominas. Imagino que se algum de nós dominasse belissimamente o chinês, ou o inglês ou o francês, se calhar mais facilmente cantaríamos numa língua diferente. Mas não é o caso. A única língua que dominamos, e mesmo assim com alguma dificuldade, é mesmo a nossa língua. Nunca houve, de facto, essa tentação. Se vais trabalhando com gente que manuseia tão bem a língua portuguesa [exemplos: Carlos Tê, Sérgio Godinho], acabas por ficar viciado nesse prazer sobre o que podes fazer com a língua portuguesa. É uma aventura de coisas novas que se podem fazer que não tem fim.
 
Como se estão a sentir nestes concertos com distância social?
Nós tivemos um primeiríssimo concerto no festival Regresso ao Futuro, em Almada. Soube-nos muito bem voltar à estrada, estar com a nossa equipa, de quem tínhamos muitas saudades. Foi uma coisa muito especial estar de frente para as pessoas e perceber que elas estavam muito felizes, não por estarem à frente dos Clã (risos), mas por estarem num sítio onde a vida parece mais normal. É uma noite em que vais estar sentado a ouvir música, a aplaudir, e teres as pessoas ao teu lado a fazerem o mesmo que tu. Essa partilha é mesmo uma coisa que as pessoas estão a sentir muita falta, de poder celebrar e sentir. Claro que é estranho veres uma plateia toda separada com distanciamento social e com máscaras. Felizmente, temos o contacto com o olhar das pessoas, cujo brilho dá para percebermos que estão connosco. O que percebemos também é que é complicado ver um espetáculo com máscara, é uma coisa desconfortável, não é a situação ideal para se desfrutar de um concerto. Mas também o que me disseram é que vale a pena, apesar do desconforto da máscara e dos cuidados que é preciso ter. Houve aplausos que sentimos que eram mais aplausos a esse encontro do que à canção que tinha acabado de ser tocada. 
Também é importante passar isto: o cuidado que há de toda a gente, desde o público às pessoas do teatro, para que todas as regras sejam cumpridas - senti isso em Almada e senti isso no concerto no Campo Pequeno com o Deixem o Pimba em Paz. Tudo o que tem a ver com as necessidades sanitárias e de distanciamento é cumprido à risca, para que não se transforme uma experiência de partilha e de celebração de cultura numa coisa que possa prejudicar a saúde a alguém. Devo dizer que em ambas as experiências, fiquei muitíssimo bem impressionada, quer com a organização das casas e dos eventos, quer com a maneira como o público se comportou. As pessoas estão genuinamente interessadas que as coisas corram bem. Estou muito esperançosa que a vida cultural continue a alcançar alguma normalidade.
 
Vocês já andam nisto há mais de 25 anos. A resiliência é uma das maiores qualidades dos Clã?
(Risos) Acho que sim. Logo no início da carreira foi o grande teste, porque tivemos o primeiro disco ["LusoQualquerCoisa"] que foi muito bem recebido, mas nem por isso tivemos concertos. Logo no arranque, ficámos com a dúvida: 'então, isto é para continuar ou acabamos já por aqui?'  Essa resposta da resistência, da resiliência, foi logo muito importante para decidir que íamos continuar cá por muitos anos. Acho que se houver entre os músicos essa urgência em continuar a criar dentro de um coletivo e a ter prazer no que se faz e a continuar a sentirmo-nos desafiados, a gente continua por cá, sempre com o sentimento de que isto não é uma coisa fácil. Cada passo tem que ser conquistado com muito trabalho e muita resistência. Há também essa consciência de começar sempre do zero, de se partir com essa humildade de que não temos o lugar garantido. Tens que merecer a atenção do público em cada trabalho que fazes.

 

Os Clã atuam este mês na Casa da Cultura de Ílhavo no dia 10 e no Teatro Municipal de Vila do Conde no dia 18. Em breve, será anunciado um concerto em Lisboa.