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Pop Dell'Arte antes de Cristo e muito depois de Cristo

Entrevista ao vocalista João Peste, sobre o primeiro álbum em dez anos dos Pop Dell'Arte, "Transgressio Global".

Pop Dell'Arte antes de Cristo e muito depois de Cristo
Céu Guarda (cortesia Sony Music)

Sai hoje o quinto álbum de originais dos Pop Dell'Arte, "Transgressio Global", espécie de máquina do tempo que viaja para onde bem quiserem. A base temporal de descolagem são os anos de 2015 a 2020 em que o disco foi evoluindo. Depois é só seguirem para os destinos temporais à descrição, tanto pode ser o século I A.C. em Roma, como Lisboa em 2084. 
 
Os Pop Dell'Arte põe e dispõem do tempo também no seu funcionalismo interno. Voltam a cumprir um período longo de abstinência editorial, com um decénio por inteiro sem lançarem um novo álbum. E quando gravam o novo disco, alongam-se na duração para lá do limite físico - em vez das 22 músicas do formato digital, nas rodelas palpáveis (CD ou vinil) só couberam 21 faixas.
 
A fonte bibliográfica de João Peste tem também uma omnipotência temporal, com milhares de anos. Tanto podem ser textos da Roma Antiga ou poemas anacreônticos da Grécia Antiga, como a citação da literatura portuguesa do século XVI - através de Luís de Camões - ou do século XX - através de um poema de Sophia de Mello Breyner.
 
Já a música do quarteto residente - o vocalista João Peste, o guitarrista Paulo Monteiro, o baixista Zé Pedro Moura e o baterista Ricardo Martins - descola tendencialmente para outro ponto temporal que soa a futuro. É o regresso ao futuro, depois da revisão da matéria dada nos primórdios civilizacionais da mitologia greco-romana. Nos séculos XV e XVI, a cultura europeia lembrou-se disso. Agora, em 2020, o renascimento aconteceu outra vez, para os Pop Dell’Arte.
 
O novo álbum "Transgressio Global" conta com um reforço de peso dos sons de metais, através de convidados como o saxofonista Rodrigo Amado ou o trompetista Simon White. A violoncelista Joana Guerra é outra das participantes recorrentes no disco.
 
Falámos ao telefone com João Peste. A entrevista reproduzida em baixo transpõe apenas parcialmente as perguntas e respostas feitas, em mais de uma hora de conversa.
 
João Peste começa por explicar uma parte significativa do conceito de Transgressio Global. 
“Uma das coisas que pelo menos para mim diferencia este disco em relação aos anteriores é uma abordagem quase que histórica, no sentido em que tem a ver com história e o passado, com outros tempos e outras épocas, em que misturámos tudo. Começa-se logo no primeiro tema por falar num regresso a Creta, inspirado num poema de Sophia de Mello Breyner que eu tinha pensado em musicar”.


 
Este é o vosso disco com mais faixas. Há alguma razão para isso ter acontecido?
Há. Demorou dez anos a ser feito, o que já tinha acontecido. Foi-se produzindo e foi sendo arrumado num alinhamento que ia fazendo sentido. E de repente, tínhamos 23 temas, dos quais acabámos por gravar 22 e achámos que fazia um todo, a tal viagem no tempo com referência a Creta, com temáticas contemporâneas. De repente, mergulhávamos numa máquina do tempo e regressávamos no fim ao presente e ao futuro. Acaba em 2084, em Lisboa. Houve o fator tempo no sentido de morosidade e por outro lado quando demos por nós, eram imenso temas. Fomos contar o tempo e tivemos a desagradável surpresa de ver que ocupava consideravelmente os 80 minutos. E o Drinking Wine in the Aventine teve que ficar de fora [ficou só na edição digital]. 


 
“Transgressio Global” é um álbum de intervenção, contra o neoliberalismo?
Não, porque nem sequer corresponde a metade do disco, são seis ou sete temas num total de 21. Embora tenhamos esse olhar sobre o passado, olhamos também ao que está à nossa volta. Portanto, o mundo contemporâneo. E tendo um olhar ao mundo contemporâneo, é difícil não constatar no advento de - não sei como chamar a isto - uma nova forma de exercício de poder. O neoliberalismo está presente hoje em tudo, de uma forma perniciosa. O Gary Becker avançou com a teoria do Capital Humano em que diz que devemos todos funcionar como uma empresa. Poderia dizer-se que isso é só uma ideia de um teórico, mas cada vez mais se ouve esse discurso não só no poder, como nos média e no nosso dia-a-dia, na conversa de café. Por exemplo, há dois ou três meses vi uma notícia por causa dos 80 anos da Tina Turner que a destacava como a mulher que tinha ganho mais dinheiro numa turné ou uma coisa assim qualquer. Isto é inacreditável olhar para o mérito [pelo encaixe] de dinheiro. Está completamente impregnado este ideal do lucro e que somos todos uma empresa.      
 
Que neoliberal absolutista será este no tema 'King of Europe'? Parece-me uma descrição biográfica de Boris Johnson.
É um ideal-tipo de um burgesso neoliberal europeu, apologista da austeridade. Não se refere a uma pessoa especificamente mas é uma personagem fictícia que reúne características que abundam por aí, todas presentes numa só pessoa. Há um bocadinho de Boris Johnson, há um bocadinho de Schäuble [o antigo ministro das finanças alemão], de Passos Coelho, de Macron, de Durão Barroso. Não é sobre ninguém em particular mas é sobre todos em geral.


 
A versão da canção de Victor Jara, 'El Derecho de Vivir En Paz', faz parte dessa vertente mais política do disco?
O Victor Jara é um músico fantástico. Teve uma história dramática e um fim trágico. Havia a ideia de fazer uma música de Victor Jara e aquela sempre me soou muito bem. Ficava a cantarolar aquilo e achava que podia ser cantada de outra forma.. De outra forma não era porque não estivesse bem, era porque tinha pano para mangas. Pegámos na música do Victor Jara porque é uma canção incrível, como podíamos ter pegado no [Jacques] Brel, no Bowie ou no Caetano Veloso. Depende do que estejamos a fazer na altura. Podem pensar que pegámos no Victor Jara porque é uma atitude política. Escolhemos o Victor Jara porque é musicalmente interessante. [Se for] só por causa da questão política, até parece que a música não é interessante. Apesar de tudo, o mais importante no Victor Jara é a música. Compreendo essa conotação política, mas a música dele é incrível, façam justiça a isso.    


 
Que banda será essa que é descrita em 'Psycho-Urban-Jungle-Roc'k?
É a mesma situação de King of Europe, só que em vez de ser uma personagem da política europeia, inventámos uma espécie de banda ideal. Cada um escolheu o seu músico. Eu fui o que teve menos sorte porque fiquei condicionado pela letra original do tema. O Paulo escolheu um guitarrista [Mick Ronson, que tocou para David Bowie], o Zé Pedro um baixista [Mick Harvey, ex-Bad Seed de Nick Cave] e o Ricardo um baterista [Max Roach]. É como aquelas equipas de futebol com um de cada. O vocalista era o Elvis [Presley] porque era o mais simbólico do imaginário do rock.


 
Em 'Freaky Dance', passas em revista danças de cantores históricos. A tua dança aproxima-se mais de qual deles? Em que dança mais te revês?
Nunca pensei nesses termos… Gosto muito da postura do Marc Bolan, acho que há ali qualquer coisa de místico e ao mesmo tempo de infantil e genuíno.  


 
No final da entrevista, o lendário vocalista João Peste fez-nos questão de explicar o título do álbum, "Trangressio Global".
“Por transgressão entendemos a superação dos limites. Para isso, é preciso quebrar as leis ou as normas. Mas não é isso em si que a palavra significa. A palavra significa ir além de, passar para além de. Significa não nos conformarmos, não estarmos presos a determinados limites, tentar ultrapassar esses limites, transgredindo, indo mais longe”.


 
Os Pop Dell'Arte têm concerto remarcado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para 8 outubro, onde vão tocar em palco as músicas de “Trangressio Global”.